Educação de risco
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 21 de Dezembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Há alguns meses fui convidado por uma estudante do curso de biologia, da Universidade Federal do Ceará, para proferir palestra no PNV. Confesso que não conhecia o Projeto Novo Vestibular, criado e organizado pelo Centro Acadêmico Frei Tito de Alencar, do curso de história da UFC. Até porque quando ele foi criado, há 12 anos, eu já havia saído da universidade e, conseqüentemente, reduzido mais do que deveria a minha vivência no campus do Benfica. Fui informado de que se trata de “um ambiente coletivo de reflexão de questões políticas, econômicas, sociais e culturais”, com o objetivo de “preparar os alunos da rede pública oficial de ensino para o concurso vestibular” e de promover o exercício “dos estudantes da UFC como profissionais da educação”. Aceitei de pronto.

Durante três dias intercalados de uma mesma semana estive, à noite, com os cerca de 300 alunos do PNV. Fiquei impressionado com a disposição daquelas pessoas de acreditarem na possibilidade de rompimento da nossa barreira de apartação educacional. Todos, alunos de baixa renda, moradores da periferia, estudantes da rede pública de ensino e de faixa etária variando entre os vinte e sessenta e tantos anos. Vencendo o cansaço, o sono, o preconceito e a desigualdade de acesso ao conhecimento, cada olhar de fé e cada pergunta de quem deseja realmente conhecer respostas e compartilhar dúvidas, foram reforçando em mim o sentimento de que existe um Brasil a revelar-se sob a cegueira de uma elite apavorada com a sua própria incompetência.

Ao ser publicada a relação dos estudantes aprovados na primeira fase do vestibular da UFC, recebo com satisfação a notícia de que metade dos alunos do PNV conquistou aprovação em cursos considerados “reservados” para jovens de alta renda, provenientes das escolas particulares e da indústria dos cursinhos, tais como medicina, psicologia e direito. Fiquei lembrando do rosto de cada um, de como se sentavam na cadeira da sala de aula, da forma como administravam o desejo de saber mais e a preocupação com o horário do último ônibus… Pensei comigo mesmo, o quanto é pouco o que precisamos para mostrar o nosso potencial. No caso desse projeto, capaz de desbancar cursinhos caríssimos, pelo que me consta, tem sido necessário basicamente a determinação dos estudantes do C. A. de História, a cessão de vinte bolsas de extensão para os estudantes/professores das diversas disciplinas e a utilização das instalações pela UFC, no período noturno, e uma mensalidade relativa a dez por cento do salário mínimo.

No momento em que a discussão sobre a criação de mecanismos para dar oportunidade de ingresso aos estudantes da rede pública de ensino às universidades, limita-se ao estabelecimento de percentual de cinqüenta por cento das vagas, imagino se não seria mais interessante a multiplicação de experiências como essa do PNV. Não estou seguro de que apenas abrindo uma vala comum para os excluídos da educação, obteríamos melhores resultados sociais. O risco de achatamento do nível (já questionável) das nossas universidades é indiscutível. Raciocinando pela ótica da ousadia da oportunidade de admissão do olhar sedento dos excluídos, fica a vontade de ver em que poderia dar a participação dessas cabeças na química inflamável do conhecimento.

Educação é poder e ninguém cede poder de graça. A liberação de metade das vagas da universidade para os alunos da escola pública é uma boa idéia que pode terminar corroborando, involuntariamente, para o poder público lavar as mãos da sua responsabilidade de melhoria do ensino básico e secundário. Dificilmente teríamos como evitar que muitos privilegiados estudassem na escola privada e “conseguissem” um histórico do ensino público apenas para disputar o vestibular com os cinqüenta por cento supostamente mais despreparados. É uma questão de ter ou não dinheiro. As artimanhas do passado e do presente, apontam para adaptações indesejáveis da burla. Basta recordar a legião de “estudantes” que iniciam cursos em países que dispensam exames do tipo vestibular e que, posteriormente, “ganham” o direito de transferência para as nossas universidades.

No mais recente provão (Exame Nacional de Cursos) do Ministério da Educação, somente os estudantes de medicina, odontologia e direito, dos treze cursos avaliados, conseguiram nota média acima de quatro. Isso em uma escala de zero a dez. É difícil saber exatamente o que essa constatação significa. Uma coisa é certa, o chamado “parâmetro ideal” do governo federal para o ensino superior, está reprovado. As estatísticas, mesmo com seu distanciamento da subjetividade, comprovam que o poder aquisitivo é determinante no exagerado desnível do nosso ensino, quer público ou privado. Quando leio essas informações, fico combinando percepções e chego a conclusão de que toda essa onda em torno do ensino, não passa de uma forma de valorização da educação como comércio e, consequentemente, eliminação gradual da escola pública e gratuita. A polêmica da expulsão dos alunos inadimplentes, como se a educação fosse um serviço opcional e não um direito constitucional, cheira ao absurdo que aconteceu com a saúde e suas grifes de cartões e planos para todos os tamanhos, conforme as condições do freguês.

O censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) informa que apenas dez por cento das crianças brasileiras estão fora da escola. A interpretação desses dados tapeiam-nos pelos recursos da semântica. Talvez esse possa ser o percentual das crianças identificadas como crianças (Estarão inclusas as que vivem nas ruas e no Brasil do fundão ?) e, dentre essas, as que estão burocraticamente matriculadas, o que não significa que freqüentem a escola com regularidade e que recebam educação compatível com as suas necessidades. Os recursos destinados à promoção de algumas alterações desse quadro, como o do FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), caíram impunemente na gandaia da corrupção da maioria das prefeituras e só Deus (ou o Diabo) sabe dessa contabilidade, seus superfaturamentos, desvios, notas frias e favorecimentos pessoais dos executivos municipais e seus asseclas.

O tom das campanhas publicitárias “adote um analfabeto” e “amigos da escola”, que estão no ar, assegura o pressentimento de que transigimos a mais uma imposição no desmonte estratégico do Brasil. Observadas de maneira isolada, como peças publicitárias, são mensagens simpáticas e mobilizadoras. Mas ao invés de um apelo à nossa contumaz solidariedade, sugerem mesmo é o afastamento do dever oficial de garantir a educação para todos, como forma de entregá-la à voracidade de um mercado lancinante e desequilibrado. Infelizmente, chegamos a esse grau de desconfiança. É um desalento pensar assim, mas não há motivos para cogitar intenções diferentes, em meio a tantos arremedos provenientes dos principais interessados em que tudo permaneça como está. A conquista da educação é uma questão política que passa pela compreensão dos que vêm sendo prejudicados pela inaceitável apartação brasileira.