Éramos negros e seremos mestiços
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 29 de Maio de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Aproveitei a data referencial dos 120 anos da assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel (1846 – 1921), em 13 de maio de 1888, para procurar organizar um pouco mais na minha cabeça a percepção do estágio em que nos encontramos, com relação aos problemas do negro no Brasil. O meu sentimento é que os “abolicionistas” da atualidade estão bem distantes, à frente no tempo e atrás nos ideais, daqueles que, no final do século XIX, conseguiram incluir na Constituição Republicana de 1890, o princípio da igualdade.

Os grupos de interesses que vêm influindo para criar uma situação de segregação étnica no País se aproveitam do incômodo resíduo de preconceito, que restou de 300 anos de escravidão, para desviar o foco de uma questão que é econômica e tratá-la pelo viés do racismo. Discorrem sobre o problema sem considerar que a raça é humana e que o Brasil é um dos lugares de síntese multiétnica (mistura genética e cultural) mais exuberante do planeta.

Estudos de genética citados pelo médico Drauzio Varella (FSP, 26/4/2008) comprovam que originalmente a humanidade é negra. Negra e africana. A migração para outros continentes, especialmente para as regiões frias, resultou em vários tipos de adaptações, dentre as quais a cor da pele. E isso não faz muito tempo, não; as variantes responsáveis pelo embranquecimento de determinadas populações européias datam de apenas seis a doze mil anos atrás.

O traçado da grande diáspora humana feito pelo médico italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza reforça a origem africana do homo sapiens e suas andanças e fixações pelos diversos continentes, e como lentamente ganharam características diferentes. No Brasil, o que as movimentações humanas produziram de diferenças de povos de locais geográficos distintos foi remixado, dando sentido, como em poucos lugares do mundo, a inusitados matizes de matrizes étnicas.

Tão importante quanto a herança genética é a herança a cultural. Foi com essa combinação que Daiane dos Santos surpreendeu o mundo ao executar seus números de ginástica rítmica ao som do choro “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo (1923-1980). E muita gente pensa que ela é negra. E é. Quer dizer, pela cor escura da pele, mas pelos números do seu DNA, ela é 40,8% européia; 39,7% africana e 19,6% ameríndia. Ah, isso interessa pouco diante do fato de ela ser brasileira.

Cavalli-Sforza diz que a grande maioria das diferenças genéticas se encontra entre os indivíduos e jamais entre os povos. “Falando em números, mais de 90% das diferenças genéticas se dão entre duas pessoas de um mesmo povo. Apenas 10% da variação se dá entre, digamos, europeus e asiáticos; entre africanos e americanos nativos” (OESP, 3/6/2007). Ele assegura que os brasileiros estão entre os povos mais misturados do planeta e que a mistura, por seu vigor híbrido, melhora a humanidade.

O racismo vem prosperando em quase todo o mundo. É vantajoso para as máquinas políticas dominantes e para quem se beneficia dela, fazendo o meio de campo nesse jogo de muita retórica e pouca eficácia de bem-estar social. O filósofo ganense Anthony Appiah coloca a questão de raça na zona das metáforas. Ele, que atua como professor em universidades norte-americanas, vem declarando forte preocupação com o que chama de superinvestimento na noção de identidade racial.

Appiah integra uma corrente de intelectuais que trabalha para derrubar a noção de raça, como dimensão das relações sociais, resultante da divisão de grupos étnicos nos EUA. “Muitos desses estudos são contaminados por racismo também” (…) “Há uma tendência a pensar que estas identificações podem significar algo mais do que realmente representam” (JB, 15/6/1997). Ele enxerga muitos perigos intelectuais, sociais e morais nesse tipo de deslocamento de sentido da palavra raça.

Ao comentar a questão da política de cotas para a população negra nas universidades brasileiras, o filósofo africano é taxativo ao dizer que “não se pode forçar a diversidade criando, entre os indivíduos, diferenças das quais eles sempre quiseram escapar” (Veja, 8/3/2006). Ele considera uma péssima idéia essa de o Brasil, um país verdadeiramente miscigenado, adotar medidas contra o “racismo”, que foram criadas para o contexto dos Estados Unidos, um país que até pouco tempo mantinha leis proibindo o acesso de negros a determinados lugares e funções.

A antropóloga carioca Yvonne Maggie também critica as políticas sociais baseadas no conceito paradoxal da discriminação positiva. “Nossa herança escravocrata tem muito mais a ver com um sistema econômico que produz desigualdades” (OESP, 18/5/2008). Ela atribui a mudança de postura do Brasil, de uma compreensão universalista para a pragmática da tensão étnica a uma conferência contra o racismo promovida pela Organização das Nações Unidas, ONU, na África do Sul, em 2001. Naquela ocasião, falaram mais alto os interesses da onda neoliberal, por meio dos patrocínios do Banco Mundial, do Bird e da Fundação Ford.

Desconfio que a ONU escolheu a África do Sul para sediar esse encontro porque ali, desde 1994, o apartheid tinha sucumbido diante da convergência de interesses para o estabelecimento da paz entre negros e brancos, liderada por Nelson Mandela. Na semana passada, no porto de Durban, onde foi realizada a estranha conferência contra o racismo, em 2001, a criminalidade xenófoba voltou a fazer linchamentos nas ruas. O presidente Thabo Mbeki tem declarado à imprensa que essa violência é um ataque contra o legado da luta pela liberdade dos sul-africanos.

Enquanto isso, no Brasil, o confronto segregacionista se expressa no encaminhamento democrático de dois manifestos (FSP, 14/5/2008) ao Supremo Tribunal Federal, que julgará a inconstitucionalidade ou não da política de cotas para negros nas universidades. Um, assinado por “cidadãos anti-racistas, contra as leis raciais”, dentre eles Caetano Veloso, Antônio Risério, Wanderley Guilherme dos Santos e Isabel Lustosa; e o outro, com nomes que defendem que as cotas são saídas para a “correção das desigualdades raciais históricas no País”, assinado, dentre outros, por Lázaro Ramos, João Pedro Stédile, MV Bill e Oscar Niemeyer.

A onda de segregação “racial” está tão sem escala que muitos dos seus defensores chegam a comparar a necessidade das soluções a serem dadas às assimetrias da desigualdade brasileira com as reparações que o povo alemão foi pressionado a fazer das vítimas do holocausto. Esquecem que a escravidão fez parte do sistema comercial vigente na época das navegações e que o território colonial que viria a se tornar o Brasil foi usado por esse sistema. É bem diferente da discriminação nazista e da discriminação ianque; a primeira, inspirada na limpeza étnica, de fundamentos eugênicos; e, a outra, derivada da institucionalização da não-mistura.

O problema da discriminação das nossas matrizes negra e nativa, assim como da maioria miscigenada brasileira, tem, portanto, sua gênese vinculada a questões econômicas perversas, que ainda mantém seus efeitos concentradores e injustos. Confundir essas referências é desrespeitar o legado dos nossos antepassados, ignorar que um dia todos fomos negros e que no futuro a humanidade será predominantemente mestiça… como o Brasil já é há um bom tempo.