Esporte e inclusão social
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 12

Domingo, 05 de Janeiro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Dos momentos de sociabilidade mais agradáveis que experimentei na vida poucos se comparam àqueles de formação de grupos de desconhecidos para jogar futebol. Numa quadra, num campo qualquer, na areia da praia, alguém chega batendo bola, fazendo embaixadas e logo aparece com quem dividir a brincadeira. Os times são feitos na hora e a diversão obedece apenas ao prazer de jogar. Essas cenas são espetaculares. Há todo um universo de códigos verbais e não-verbais bem próprios conduzindo espontaneamente a aproximação e o envolvimento das pessoas. Participar desses instantes de convivência igualitária entre diferentes é um exercício animador para uma sociedade acuada pela estética da violência, da esperteza e do faz-de-conta no cotidiano da exclusão.

De tanto prestar atenção nessas células de familiaridade, tão pouco observadas como fonte de inclusão, fiquei animado ao tomar conhecimento do entusiasmo do novo Ministro dos Esportes, Agnelo Queiroz (PcdoB-DF). Ele é médico, defensor da melhoria da nossa qualidade de vida e tem declarado que está disposto a promover o esporte como fator de inclusão social. Essa percepção política é de grande relevância. Agnelo inspira-se no fato de que toda potência econômica é antes de tudo uma potência desportiva. A função social do esporte colocada como estratégia do novo Brasil assume o seu caráter de instrumento para o desenvolvimento físico, intelectual e de formação de uma cultura cidadã.

A intenção de moralizar o futebol, de conseguir mais verbas para o esporte, de melhorar a legislação desportiva, de fazer campanhas de paz nos estádios, de lutar para o país sediar grandes eventos e de profissionalizar e envolver os mais diferentes segmentos sociais, a fim de levar o Brasil a ser uma referência do esporte mundial, deve ser acolhida com aplausos. O ministro diz que vai procurar tratar o esporte como direito de todos e para isso pretende identificar quem dispõe de equipamentos para prática desportiva, tais como escolas, empresas, entidades governamentais e não-governamentais, igrejas e clubes sociais para essa mobilização. Nessa tarefa espera entrelaçar a ação desportiva com outras políticas do governo Lula, inclusive o Fome Zero.

Como as declarações de Agnelo Queiroz colocam o esporte na condição de quociente da unidade nacional é de se esperar que dentro desse processo sejam levados em conta os conteúdos necessários à construção coletiva de uma nova visão de mundo. O Brasil precisa realmente contar com o esporte na desconstrução do cinismo, da submissão colonial e da lei da vantagem. Por isso, devemos aproveitar a disposição do ministro para ir além do esporte com instrutores, vilas olímpicas, calendários e suas indispensáveis programações. O estímulo às práticas desportivas sem compromissos formais deve ser pensado estrategicamente. Óbvio que as competições espontâneas serão multiplicadas por conseqüência da ação federal, mas diante da urgência de reatamento dos nossos laços comunitários, seria formidável se cuidássemos das condições dos ambientes onde atletas e torcedores se articulam para partidas de grande interesse local.

Gosto dessa idéia de reforçar o esporte como inclusão social principalmente pelo poder pedagógico que ele impõe naturalmente. Praticando esporte é mais fácil de aprender a esperar a vez de cada um, de aprender a ganhar e a perder. Compreender que uns podem ser mais hábeis que outros e isso não tem problema. Compreender a importância do reserva, da camisa 12, do torcedor, da galera, da psicologia da multidão. Compreender que nos campos, nas quadras, onde quer que se pratique esporte, os papéis dos jogadores são diferentes e complementares no esforço para a conquista de um objetivo comum. É no esporte que melhor entendemos a existência da sorte, não no sentido lotérico, mas no da força das circunstâncias.

Os esportes coletivos são verdadeiras mini-fábricas de cidadania. Quanto mais uma nação exercita a prática desportiva mais fortalece a sua base para o diálogo, para a participação e para a inclusão do outro. O papel principal das competições desportivas na terra, na água e no ar é a promoção da conexão das pessoas entre si e entre culturas comunitárias, regionais e transnacionais. É no esporte que temos a grande chance de aprender a decodificar muitos dos códigos da vida em sociedade. O esporte dá condições ao fortalecimento do sistema de valores com base na coletividade.

A arte de jogar é ponteada de ludicidade. Para ter efeito social includente o aprendizado desses valores deve respeitar a ausência de expectativas de desempenho nas práticas desportivas cotidianas. Que existam as chamadas escolinhas de futebol, com um adulto sempre organizando o que as crianças devem fazer, mas isso deve ser exceção. A regra de uma ação de inclusão social pelo esporte está na fomentação das peladas, dos rachas de várzea. Esses ambientes, além de socializar, são propícios à criação de estruturas perecíveis, por isso mesmo favoráveis ao surgimento de craques. O espírito do esporte está na diversão da liberdade inventiva. Depois podem vir as técnicas, os técnicos, a rigidez das regras, os títulos e o reconhecimento.