Fantasia laica para 2002
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 22 de Dezembro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tenho comigo a impressão de que os anos são tão bons ou ruins quanto a nossa disposição de preenchê-los com a realização do que acreditamos. O que esperamos de um ano novo deve ser, portanto, proporcional ao tanto que estivermos seguros para a operacionalização dos seus conflitos. A vida se explica a partir do somatório de pequenos atos na travessia de grandes sonhos. O Brasil de 2003 é o Brasil da esperança em ação. Há um rascunho de vontades de mudar que precisamos definir na prática o que isso significa para cada um de nós e para o conjunto da nação brasileira.

O desafio maior dos dias que chegam será a conciliação entre o desgaste resultante do tanto que existe para ser feito e a nossa capacidade de continuarmos semeando confiança. O cheiro do humo das urnas é indispensável à sensação de fertilidade democrática. O entendimento nacional depende da segurança depositada nesse chão de imensuráveis expectativas. Sob os nossos pés existe um mundo tão fantástico de possibilidades quanto o que imaginamos acima das nossas cabeças. A percepção mais ajustada do que devemos fazer é uma questão de definição de escala de aspirações muitas vezes inexploradas pela consciência.

Tiramos o entrave da desesperança, mas isso não basta. A atmosfera do universo da razão supérflua, a que continuamos colonialmente submetidos, somente cederá espaço para mudanças significativas se reforçarmos, instante por instante, a nossa paixão em favor de um sentido de destino comum à maioria das pessoas. Está comprovado que a pressa em chegar aonde não sabemos que vamos ultrapassou as fronteiras do óbvio. É um manequim fora de medida, fora da moda que nos interessa, fora dos estímulos que nos dão prazer enquanto gente equatorial.

Para sermos socialmente fecundos e respeitados nas nossas relações comunitárias e internacionais precisamos assumir a missão transformadora que anunciamos para o ano de 2003. Dizem que o fenômeno da preferência por determinados perfumes ocorre como busca de parceiros biologicamente adequados ao fortalecimento da vida. São pequenos enigmas de sedução da eternidade normalmente escamoteados pela mixórdia cosmética. No processo de evolução social esse desejo de perpetuação acontece também de forma sutil e misteriosa. Os segredos da beleza política aparecem na auto-confiança e na aptidão de nos percebermos desejantes e capazes de praticar saudáveis ambições pessoais e coletivas.

O ano de 2003 é o ano do debute pleno da democracia brasileira. Vivenciaremos os conflitos existenciais ensejados por essa circunstância especial. Torna-se mais instigante o fato de não termos um receituário pertinente à experiência que nos aguarda. Tudo é novo na descoberta do como queremos nos conduzir daqui por diante. Fazer das imperfeições um modo de aprender é uma tarefa a ser cumprida pela impaciência dessa juventude política. O que derivar dessa habilidade é o que nos tornará adultos e independentes daqui a algumas gerações.

O pós-operatório de uma eleição inspirada na esperança exige do paciente alguns cuidados fora do comum. E esse paciente é cada um de nós. Por isso 2003 será um ano de muito trabalho e de compromisso solidário, mas também uma fase de atenção redobrada com a nossa saúde cultural. Precisaremos aumentar a consciência de que devemos admirar mais o que somos, de prestar mais atenção nos outros, enaltecer o que vale a pena e olhar pontos perdidos no horizonte, descerrando de maneira determinada a placa renovadora da contemplação. Isso nos levará a sentir mais os alertas da natureza, a poluir menos, a valorizar mais o lugar onde moramos e a sermos mais desinteressados nas relações pessoais.

Para construir o Brasil decente que elegemos em nossa esperança, teremos que passar por esse refinamento de quereres. Precisamos vasculhar onde há vagas nas nossas horas vagas e gastar mais tempo com elas. Ser mais abnegados mesmo correndo o risco de ser apontados como incompetentes nas rodas da esperteza. Ser mais sensíveis mesmo que isso possa parecer escassez de força nas olimpíadas da violência. Refletir mais, matutar mais e maturar mais para observar menos o que não agrega felicidade, mesmo que pareça perda de tempo. Tudo isso talvez faça parte apenas de uma fantasia laica para 2003, porém, do jeito que for, não dispensa a vigília da nossa indignação. Só ela nos proporciona a compreensão de que os bons tempos são os que estão por vir.