Festa da cumplicidade
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte
Terça-feira, 20 de julho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A habilidade e disposição para aprender a aprender é uma das qualidades facilmente identificadas no nosso cadinho cultural. Quase sempre, a desinformação, o preconceito e outras viseiras sociais e políticas terminam limitando o exercício desse valoroso atributo, em favor das minorias privilegiadas pelo status quo. A embrionária experiência de gestão compartilhada, ensaiada no ambiente do Fórum da Música, sugere sinais animadores de que, com paciência e determinação, é possível sair do tradicional clima desagregador da competição individual para o desempenho do zelo coletivo. Apoiados na crença de que a convergência de diferentes potencializa o interesse comum, apostamos nesse processo de ampliação do conhecimento pelo diálogo e atitudes inter-relacionadas. 

O maior problema da música não está essencialmente na relação do suposto bom ou mau gosto natural da audiência, mas na violação do direito de oportunidade de acesso à nossa farta e preciosa produção. Qualquer pessoa é capaz de identificar e escolher o que quer, quando tem opções visíveis. Sem saber da existência das incontáveis obras musicais de qualidade que surgem continuamente e em abundância da inventividade mestiça brasileira, a população fica refém desse esquema economicamente grosseiro de indução de consumo que, ao provocar a sensação de falência criadora, contribui deliberadamente para a corrosão da nossa auto-estima e passividade cidadã. 

Diante deste fato, aparentemente intocável por qualquer versão alternativa, o Fórum pelo Fortalecimento da Música Plural Brasileira, lançado em março deste ano, no café da manhã do Pacto de Cooperação, tenciona “integrar propostas, projetos e estimular ações de difusão da música brasileira, contribuindo para a montagem de uma rede de acesso à diversidade da sua criação, a partir do fortalecimento da produção cearense”. A fim de dar conseqüência a essa missão de harmonizar a arte local ao processo permanente de construção e renovação da brasilidade, os participantes do Fórum decidiram, respeitando o tempo e esforço voluntário de cada um, investir prioritariamente em idéias e ações construtivas, evitando ao máximo a perda de tempo com teimas arbitradas por vaidades, formalidades vãs e segregação por preferência estética. 

Sempre com o cuidado de esquivar-se das demandas próprias às funções das entidades de classe, realizaram-se, nos últimos quatro meses, oito encontros operacionais, com uma média de 40 participantes, entre músicos, compositores, intérpretes, produtores culturais, empresários, políticos, estudantes e demais interessados no tratamento da questão da música como patrimônio imaterial. O caráter largado do Fórum suscitou o desejo de realização do seu primeiro evento de ampliação, para um número maior de pessoas, dos conceitos e resultados compartilhados nesse período. A festa da cumplicidade está prevista para o próximo dia 26, às 19 horas, na Zazueira, boate do flat Brasil Tropical que pretende incluir shows de música plural brasileira na definição da sua grade de programação. 

Os artistas estão poupados de canjas ou qualquer compromisso de apresentação, já que o encontro, a conversa solta e a integração é o ponto de honra do acontecimento. Entretanto, um telão, com videoclipes locais e uma programação musical, montada pelo DJ da casa, oxigenam o coquetel. As músicas serão pinçadas dos 36 CDs que compõem a edição promocional do catálogo “Ceará Musical”, lançado na ocasião, e a partir da coletânea “Ceará – grandes compositores e intérpretes”, produzida para a solenidade de inauguração oficial da fábrica CD+, que cedeu parte da sua edição de cortesia para ser destinada aos programadores das rádios do interior, com apoio formal da diretoria da Associação Cearense de Rádio e Televisão, ACERT. 

Quem entende que vale a pena acreditar na nossa ebulição musical e for ao evento, vai contar com material de divulgação, do tipo camiseta e adesivo para carro, com a marca do Fórum. É um carimbo com os dizeres “Música Plural Brasileira – Patrimônio Imaterial”, sobre um polígono solar de intensa luz amarela, com barra azul no rodapé, cor inspirada na radiação das ondas eletromagnéticas de comprimento de onda, por onde trafega o som no espaço. A tarja azul mostra a palavra “Ceará”, vazada no branco. A idéia é disponibilizar a marca também para as pessoas de outros Estados que têm demonstrado simpatia pelo movimento. Nestes casos, basta trocar o nome do lugar. 

Os resultados das reuniões do Fórum vão, contudo, além das soluções simples e palpáveis encontradas nos seus círculos de conversas em expansão. A percepção de que é o comportamento social que determina o desenvolvimento e que, para isso, é indispensável uma postura crítica, transparente e o respeito à diferença, vai contribuindo para a mudança cultural. O Fórum da Música é um em uma dezena de fóruns temáticos do Pacto de Cooperação que, por sua vez, é uma ação de cidadania em rede, animada desde 1991 por inúmeras pessoas interessadas no desenvolvimento sustentado do Ceará. 

Cada fórum, temático, setorial ou regional, administra suas peculiaridades com base em critérios que primam pela visão sistêmica e de longo prazo, pela complementaridade e inovação, dentre outros. O segredo da força do Pacto está na Gestão Compartilhada que “é a busca de reunir, no trato de problemas coletivos, o maior número de agentes que podem aportar experiência e conhecimento para a solução do interesse comum, mantendo suas respectivas identidades”. Neste aspecto, ainda temos muito o que aprender. Mas já é bastante agradável ver roqueiros e catingueiros em um mesmo grupo de discussão em favor da música.

 Das particularidades que o Fórum da Música implementou na sua metodologia de trabalho, está a alternância de espaços para reuniões operacionais, como forma de estimular a descentralização das atividades artístico-culturais em Fortaleza. Hotel Colonial, Centro Cultural do Banco do Nordeste, Bar Cabaré da Pirrita, Circo Integração da Universidade Estadual do Ceará, Bar Maria Bonita, Telemar, Centro Dragão do Mar, Casa José Marti e Café do Museu da Imagem e do Som, foram os ambientes que abrigaram as reuniões até agora. O hábito da parceria encontra-se presente também na diversificação para a emissão de convites, que já contou com o apoio cultural do Grupo J. Macêdo, Centro Cultural do Banco do Nordeste, Pró-Reitoria de Extensão da Uece, Centro de Design do Instituto Dragão do Mar, IBRAN e Azucrina Arte e Produções.

 No dia-a-dia das reuniões, propostas simples e pragmáticas misturam-se com desejos e anseios abismais. O holograma vai-se formando pela superposição do real com o virtual, da objetividade com a subjetividade. Pouco a pouco, a sensação de injustiça e impotência, próprios de uma sociedade marcada pelo paternalismo e historicamente tapeada em seu poder de reconhecimento cultural, começa a tomar novos ares de esperança. Isolamento, regressão e outras máscaras fóbicas sociais, tendem a perder terreno para a autoconfiança, revigorada pela certeza de que a união de propósitos estabelece um campo de relacionamento capaz de funcionar perfeitamente em instâncias autônomas, sem sede, sem cargos e sem verdade absoluta.