Se eu não tivesse visto de perto, talvez começasse a contar dos espetáculos que nos dias 26 e 27 passados marcaram as comemorações dos dois anos do Centro Cultural Cariri mais ou menos assim: “Como me disseram…”. Esse é o jeito de falar próprio da linguagem popular quando algo transcende o real e se joga no devir dos campos das boas lembranças pela travessia das balizas do tempo. Mas eu estava lá e posso confirmar que foi legendário.

Na noite dos “Saberes Sonoros”, mestras e mestres brincantes subiram com a Carroça de Mamulengos ao palco do Terreiro das Artes e se juntaram a Chico César, convidado especialíssimo das folias da sexta-feira. A produção musical de Maria Gomide, Beto Lemos e André Magalhães batizou essa união, que foi abençoada por uma plateia misturada às danças de reisado, carregadas de alusões e dramas, em sua consistente fluidez por sapo, burrinha e jaraguá, entre outras figuras de fabulação.

O mestre Aldenir, do reisado Reis do Congo, cantou bacuraus e beija-flores no lançamento do álbum de seus 90 anos, o nono da coleção “Saberes Sonoros”, produzida pela Carroça de Mamulengos. A mestra Marinêz, do grupo Frei Damião de coco e de reisado, os mestres Raimundo e Antônio, do Reisado dos Irmãos (Discípulos do mestre Pedro), e Joãozinho e Dodô, do reisado São Francisco, completaram a plêiade de versos e louvações.

O viver brincante é um viver que tem ritmo e altivez: “Olê, olá, meu boi é bonito, bonito ele é”. E quem explica isso é o mestre Raimundo, quando diz que “brincar reisado prolonga a alegria de viver”. Chico César, com voz e violão, acompanhado por milhares de pessoas em coro, expande essa polifonia verbal cantando: “Se da minha boca sai, ai ai / Que da sua boca venha, ai ai / Uma declaração de amor”. Faz isso, tocando Luiz Gonzaga e Janduhy Finizola e enaltecendo Abidoral Jamacaru.

Festa de dois anos do Centro Cultural Cariri. Foto: Samuel Macêdo / Divulgação

Maria Gomide comentou que o convite a Chico César teve dois suportes lógicos: a necessidade de uma atração respeitada internacionalmente, que pudesse juntar muita gente, e que fosse um artista com raízes autenticamente nordestinas. E o filho da dona Etelvina e do brincante seu Francisco, com seus motores vitais paraibanos, acionados a partir de Catolé do Rocha, foi o escolhido, e fez um show de vibrações “Aos Vivos” e com chamadas de busca para a recuperação da lucidez fragmentada nos últimos anos por rompantes de possessão fascista.

No dia seguinte, no sábado do “Nordeste Orquestrado”, Luiz Fidélis testou mais uma vez a capacidade de entrega do público entre desejos e necessidades, entre o amor e a comida requentada em tempos adversos: “Não se esqueça também de esquentar / Com seus beijos minha vida / E o sobejo da comida que sobrou do jantar”. Fez um show com seus grandes sucessos e cantou porque quis, uma vez que ao virar o microfone para a plateia todo mundo cantou junto e bonito conferindo intimidade ao espaço.

A experiência da música popular de Fidélis com uma banda de base e a Orquestra Solibel (Sociedade Lírica do Belmonte), da Escola de Música Mons. Ágio Moreira, esbanjou consistência e deu um potente volume sonoro à obra do artista, sempre cheia de xote, como de fato é o espírito da cearensidade. E ninguém bodô no forrobodó de Luiz Fidélis, que, assim como Chico César, homenageou Abidoral Jamacaru e revelou que foi a gravação que Abidoral fez de “Flor do Mamulengo” que abriu as portas para os artistas do Cariri. O show contou com arranjos e direção musical de Ranier Oliveira, e Thomás Ravelly fez os arranjos para a orquestra, regida por Wesley Santana.

Essas folias de noites artísticas alumiosas que o Centro Cultural Cariri reuniu para comemorar sua atuação regional nos campos das artes, dos esportes e do lazer sinalizam para o quanto inventar realidades requer imersões na realidade da arte.

Fonte: Jornal O POVO