Google e China em nossas vidas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 08 de Abril de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Google e China representam dois dos mais significativos símbolos dos contrastes da atualidade. O primeiro quer forçar o novo paradigma a partir da visão de mundo estadunidense, em sua ânsia de manter a humanidade sob o controle das corporações, e o segundo, quer fazer valer a sua investida de socialismo de mercado com base na atração de polo geopolítico mundial. Colocados na mesma balança e escala, podem parecer dois pesos e duas medidas, mas não o são, se observados na nova configuração da estrutura global de poder.

A briga entre os dois é acirrada. O mercado de acesso a internet não é nada desprezível em um lugar como a China, com cerca de 400 milhões de usuários, que vem crescendo economicamente e que tem um potencial de mais um bilhão de consumidores, que ainda não são internautas. A Google reclama mais abertura por parte da China, para a penetração e expansão do seu negócio de venda de conteúdos e o Estado chinês insiste em reagir com o seu próprio buscador, que é o Baidu, com o seu próprio MSN, que é o QQ, e com o seu próprio Facebook, que é o Qzone.

Temos aí uma inusitada guerra ideológica entre filtros comerciais e filtros patrióticos. O embate entre a Google e a China é o choque de dois modelos autoritários que querem se impor no processo de construção da nova ordem mundial. Diante da hipótese de que a internet tem fluxo livre, a sociedade fica sem entender bem esse conflito de “escolhas” entre o Mercado e o Estado. Em nenhum dos casos existe liberdade plena de escolha, o que neste caso deixa a internet em uma situação pré-histórica em termos de instituição democrática.

A Google cobra da China liberdade para a venda de conteúdos, mas comercializa informações com negociações regionalizadas. Em seu mapa de pontos de venda, cada país tem a sua extensão e os seus filtros. Se entro em google.ca, abro a prateleira do Canadá; se google.sn, aparece a gôndola do Senegal; se google.ph, surge o balcão reservado às Filipinas; se google.com.br, pode-se ver a estante do que está ofertado ao Brasil. Todavia, não se acessa o portal google.us ou o google.uk se quisermos ver o que os usuários estadunidenses ou ingleses enxergam no mundo virtual. A China, por sua vez, segue projetando seu poder globalmente em bases físicas, onde a vida acontece.

O Estado de Direito no universo da rede mundial de computadores não se realiza quando limitado ao âmbito comercial e político. Sem a participação consciente da sociedade civil, o maravilhoso mecanismo da internet acaba por se reduzir ao fenômeno juvenil da polarização de grupos, desvirtuando a sua condição de troca aberta de ideias, saberes e conhecimentos. Isso não quer dizer que os modelos da Google e da China sejam abomináveis. Pelo contrário, caso evite-se que sejam hegemônicos, há muito o que aproveitar de ambos na construção do novo padrão civilizatório.

Os Estados Unidos, país de origem da Google, criticam os governos da Arábia Saudita, do Egito, do Irã, da Tunísia, do Uzbequistão e do Vietnã, dizendo que eles são antidemocráticos, por controlarem internamente o acesso a internet. Primeiro, é preciso dar um desconto nessa conversa de que um comete censura e o outro não; e, segundo, porque o que está por trás dessa crítica é a pressão de abertura de mercado para corporações como a Google, a Microsoft, a Yahoo e outras fornecedoras de conteúdos, com seus acessos em troca de publicidade, propaganda e venda de cadastros de clientes.

Se a Google, que é a maior provedora de informações do mundo vai ficar em Xangai ou em Hong Kong, ou se, com os seus 35% de participação no mercado chinês, ameaça os 65% da Baidu, é o que menos nos interessa; a questão é qual o efeito dessa queda de braço no comportamento dos demais países do mundo. No Brasil, temos uma sociedade deslumbrada com os benefícios proporcionados pelos serviços Google e um Estado constitucional empolgado com a inclusão digital, embora nem um nem outro pareçam muito preocupados com o que há de embaçado nesse pano de fundo.

Dos quase setenta milhões de brasileiros que têm acesso à internet, metade ainda se conecta por meio de lan house. Esses números escancaram o nosso potencial de consumo de equipamentos e de serviços de acesso, considerando uma nação de quases duzentos milhões de habitantes. Com tudo isso, não temos sido capazes de sequer exigir que os fabricantes de máquinas e equipamentos eletrônicos vendam seus produtos no País com referências em português.

Espera-se que essas sensibilidades estratégicas, pronunciadas nos casos da Google e da China, sejam consideradas pelo Ministério da Justiça por ocasião do debate sobre o Marco Legal da Internet, que vem sendo trabalhado no Brasil com o propósito de assegurar a liberdade de expressão e o direito à privacidade. Espera-se também que o Ministério da Cultura leve tudo isso em conta ao entrar na reta final da discussão sobre a modernização da nossa Lei do Direito Autoral.

Diante de uma Google, com faturamento anual de vinte e quatro bilhões de dólares, e de uma China, candidata a ultrapassar o Japão e a assumir o posto de segunda maior economia do mundo, não dá para deixarmos de nos perguntar qual a política que queremos para a era digital. Não podemos simplesmente nos tornar reféns dos estratagemas das megacorporações e das superpotências, numa relação quase constrangida entre o mundo concreto da vida cotidiana e o mundo “transcendental” da virtualidade.

Para se diferenciar, a Google diz que não vende produtos nem serviços, mas, sim, “exporta liberdade”. Tudo muito bonito no quadro da “missão” da companhia, mas a sociedade só saberá o efeito dessa “liberdade” quando não tiver mais fontes de consultas próprias e a Google, como a Novartis vem fazendo com grãos transgênicos, adquirir tanto controle do nosso patrimônio imaterial, que poderá exigir o que quiser a quem puder pagar caro por alguma informação.

Convém lembrar que os instrumentos tecnológicos que estreitam as ligações entre pessoas e povos são os mesmos que podem ser utilizados para a repressão, espionagem, pedofilia, estelionato eletrônico e manifestações de preconceito. A China é acusada de abusar de regulamentações e padrões que prejudicam os investimentos estrangeiros, como os da Google, em seu território. O fato de essas acusações partirem dos EUA me parece um contrassenso, já que o governo norte-americano, dentre os seus costumes protecionistas, possui um “inquestionável” plano de segurança do seu ciberespaço.

Que lições poderemos tirar desses desencontros de olhares? Por que com relação à China o tema é visto como censura e com relação aos EUA não passa de proteção contra as grandes ameaças globais? Por que quando o controle da informação parte das empresas norte-americanas é visto como “liberdade de escolha” e quando parte do Estado chinês resume-se a “censura”? É como se de um lado, “ativistas” da liberdade, que “por acaso” ganham bilhões, só “fizessem o bem” e do outro lado, “terroristas” de organizações criminosas, só “fizessem o mal”?

Google e China são importantes para o Brasil. Se conseguirmos clareza em seus propósitos, as duas poderão continuar nos oferecendo muito do que precisamos para estar bem posicionamos no mundo pós-comunismo e pós-capitalismo que se avizinha. O desafio brasileiro é de como tê-las em nossas vidas sem nos deixarmos tragar, sem entrarmos na quizila de um dizer que o outro não presta, sem abrirmos mão de existir juntos, sem nos deixar contaminar pelos extremos. Eis a questão.