Imprensa de insurgência
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 19 de Abril de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Numa época em que as grandes revistas semanais de circulação nacional circulavam com cerca de 40 mil exemplares, a imprensa alternativa teve jornais com grandes tiragens como o Opinião (1971), que em seis anos alcançou picos de 38.400 exemplares, e o Pasquim (1969), que saiu de 20 mil para 200 mil exemplares em duas décadas de circulação. O período entre o golpe militar de 1964 e a Anistia, em 1979, foi marcado por um mundo espelhado pelos blocos ideológicos do capitalismo/liberalismo e do comunismo/socialismo.

A vida política brasileira seguia submetida a essas duas perspectivas e a palavra “resistência” passou a sintetizar a mentalidade dos que fizeram jornalismo de oposição ao regime militar. Daí o título do projeto “Resistir é preciso”, que o Instituto Vladimir Herzog está lançando, tendo como primeiros produtos dois álbuns de memória; um, “Os protagonistas desta história”, com 60 dos muitos fazedores dessa imprensa insurgente, e outro, “As capas desta história”, com primeiras páginas de muitos dos jornais de circulação perseguida, que fizeram essa história.

Em “Os protagonistas”, trechos de mais de 100 horas de gravação em 12 DVDs, com coordenação de Clarice e Ivo Herzog e pesquisa de Vladimir Sacchetta, pode-se apreciar falas de ativistas e militantes da imprensa alternativa, clandestina e de exílio, que influenciaram no processo de redemocratização do Brasil. Para adquirir a íntegra de cada depoimento o caminho é o e-mail protagonistas@vladimirherzog.org do Instituto Vladimir Herzog. Nas 188 páginas de “As capas”, 300 delas ilustram o livro organizado por Ricardo Carvalho, José Luiz del Roio, Vladimir Sacchetta e José Maurício de Oliveira.

Embora centrado no contexto dos fatos e versões desse período da história recente do Brasil e suas restrições ao acesso à informação, o projeto “Resistir é preciso” faz um apanhado geral de publicações que precedem o recorte histórico abordado. E dentre os que vieram antes estão jornais como o Tiphis Pernambucano, feito por Frei Caneca na passagem do século XVII para o século XIX, em oposição ao governo central português e, dentre muitos, um muito especial, pela genialidade e irreverência, que foi o Jornal Subiroff (1920), de Nereu Pestana, filho de Nestor Pestana, então diretor de redação do jornal O Estado de São Paulo. Ele inventou o delegado russo Ivan Subiroff para seu jornal, considerado de boa qualidade de opinião.

A lista é grande e atraente. O pesquisador Vladimir Sacchetta ressalta a importância da referência e reverência aos que vieram antes, como base para os jornais que “não hesitaram em criticar a violência, os abusos e o conservadorismo impostos pela ditadura”. E o primeiro deles foi o Pif-paf (1964), criado pelo humor inteligente e cáustico de Millôr Fenandes, com a colaboração do Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Claudius e Sérgio Porto. A capa reproduzida é a da edição número 3, na qual aparece um general em carta de baralho e a seguinte nota de rodapé: “Esta é a nossa capa. Aliás, capa e espada”.

O maior, o mais influente, o mais criativo e o que durou mais dentre todos, O Pasquim (de 1969 a 1991), é um dos poucos a ter a sabedoria de recorrer à cultura, veiculando uma mescla de pensamento de artistas, intelectuais, jornalistas, estudantes e militantes políticos, em sua luta pela desmoralização da ditadura. A interação rendeu citações como na música “Coqueiro verde” (Roberto e Erasmo Carlos): “Mas eu vou embora / vou ler meu Pasquim”. Ziraldo conta que era preciso fazer de três a quatro colunas para escapar dos censores e assegurar a publicação do jornal. Relata o fato sem pose e sem pedantice: “Não tem heroísmo nisso. É da natureza da profissão”.

Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Cidade do Rio de Janeiro, é de opinião que o Pasquim é um exemplo de como esse tipo de imprensa poderia ter dado certo, caso existisse nos protagonistas da “resistência” um espírito empreendedor empresarial. Ela tem razão, tanto que o outro exemplo de publicação sólida e mais duradoura do que o normal no mundo da imprensa alternativa, é o jornal Opinião, de Fernando Gasparian, empresário da indústria têxtil que bancou a sua publicação. Editado por Raimundo Pereira, pernambucano de Exu, o Opinião posicionava-se claramente contra a ditadura e, para ter asas soltas, contava com uma equipe de colaboradores que ia de Celso Furtado a Antônio Cândido.

Assistindo aos depoimentos disponibilizados nos DVDs foi que me dei conta de algo que sempre me inquietou: por que havia tanto racha no meio dessa imprensa marginal? Raimundo Pereira explica: “O sujeito quer um jornal para expressar os seus pontos de vista”, quando não dava, não havia o que tolerar; o comum era sair para fazer o próprio jornal. Foi assim que, a partir do Opinião surgiu o Movimento (1975), depois o Amanhã, em seguida o Em Tempo, que se vangloriava por ser um jornal de jornalistas, sem direção de partidos ou facções políticas. Maria Rita Kehl atribui as assembleias intermináveis às tentativas constantes das tendências de dominar o jornal.

Um jornal que ganhou muita importância também por recorrer à cultura em sua dimensão de transformação política, foi o Versus (1976). O livro do projeto “Resistir é preciso” mostra uma capa do Versus com uma plêiade de personagens lendários, acentuados pela força estética que os acompanhava, a exemplo de Emiliano Zapata e Virgulino Ferreira, o Lampião. Outra estratégia maravilhosa desse jornal era a recorrência a abordagens latino-americanas para dizer do Brasil, sem precisar dizer. Osmar de Barros Filho (Matico), velho gaúcho de guerra esclarece que, por exemplo, “quando falávamos da morte de um índio peruano, falávamos também do índio brasileiro”.

Muito boa também é a história do jornal O Sol (1967), cantado por Caetano Veloso em Alegria, Alegria: “O Sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça”. Encarte do Jornal de Sports, O Sol inovou na parte gráfica, colocando um artista diferente para fazer cada uma das suas edições. A biógrafa Ana Arruda Callado lembra que esse jornal pretendia ser uma escola de formação prática de jornalistas, em contraponto às escolas que faziam jornal de mentirinha. Reynaldo Jardim, poeta e editor, queria um jornal que apostasse na boa notícia, que fosse um jornal jovem e para jovens. E adverte: “Jovem é aquele velho Bertrand Russel e não aquele estudante desatento da realidade que o cerca”.

É muito divertida a história dos dois casamentos de Bernardo (que tinha codinome José Ricardo) e Olívia Joffily, casal que de 1974 a 1979 foi responsável pelas transmissões em português da Rádio Tirana, da Albânia, sabendo do Brasil apenas pelas ondas da BBC de Londres e das rádios da Suécia, de Moscou e de Pequim. Entre os relatos mais emocionantes está o de Bia Cannabrava sobre sua relação com a música para suportar o exílio. Um pouco de “Pátria Amada” (Vandré e Manduka), vencedora do Festival de Aguadulce, no Peru (1972), cantada por Soledad Bravo: “Se é para dizer adeus / pra não te ver jamais / eu, que dos filhos teus / fui te querer demais…”. E virou hino dos exilados. E para descontrair, o genial Laerte esclarece que passou a andar vestido de mulher por “inconformidade com os padrões de gênero” e por “desejo profundo de se aproximar do mundo feminino”.