O ecossistema comunicativo do mundo digital e em redes não pode submeter as pessoas a deixarem de ser humanas para poderem ter o melhor aproveitamento dos recursos de interações dos seus atraentes sistemas interconectados. Romper com a ideia de que transitar exclusivamente na espacialidade virtual é um determinismo absoluto, e submeter esses ambientes às nossas vontades é o mínimo que se pode fazer para não abdicar de si, nem da vida social plena.

A regulação da existência nesses tempos de primazia dos algoritmos tem complexidades que se deve considerar muito bem, principalmente do ponto de vista da infância, dado que a criança online não dispõe da experiência necessária para discernir sobre as intenções dos conteúdos que acessa. Na lenta evolução de uma pedagogia capaz de lincar o modo digital ao sentido de humanidade, a sociedade tem produzido leis que possam assegurar a integridade da cultura infantil, estabelecendo limites às big techs e regulando práticas democráticas.

É nesse contexto, marcado pela lógica de que o brincar com o corpo e com os pensamentos resumem-se a uma infância meramente digital, que o livro “Direitos fundamentais da criança no ambiente digital” (Thomson Reuters, 2023), da advogada Isabella Henriques, traz contribuições significativas, com abordagens concretas de passos dados em favor dos direitos de crianças e jovens, apuradas em tese de doutorado orientada pelo professor Marcelo Sodré, ativista do direito nos campos das relações ambientais e de consumo.

A autora, que é diretora-executiva do Instituto Alana, entidade que tem efetiva atuação jurídica nas buscas por melhores condições da infância brasileira, aborda desde direitos constitucionais a direitos difusos e coletivos, contemplando ainda direitos às relações sociais, à proteção de dados pessoais e o resguardo aos assédios do consumismo. Revela atenção especial para os impactos na infância das ondas discriminatórias e da assimetria existente entre a nova ordem econômica digital e o comportamento servil do usuário que virou produto.

Reprodução do jornal O Estado de Minas (25/05/2014)

O olhar multidisciplinar e interseccional está presente no livro de Isabella Henriques, que tem como eixo principal os avanços da institucionalidade das bases legais em favor da infância. O ambiente digital ocupa cada vez mais os territórios e contextos da infância e, para que as crianças tenham o direito de crescerem como humanas e não apenas fazendo as vezes de extensão de máquinas e telas, é indispensável que se tenha esse conhecimento da estrutura jurídica por meio do qual elas possam estar protegidas.

Como nem toda lei está escrita, emancipar a infância da roteirização cotidiana dos dispositivos, aplicativos e plataformas digitais requer também o reconhecimento de que a criança necessita de um tempo próprio e condições peculiares para experienciar o mundo. O livro de Isabella Henriques se integra perfeitamente a outros esforços engendrados no âmbito da cultura e nas esferas da política para que a criança tenha proteção e possa transitar com segurança pelo ambiente digital.

Cada vez mais os arcabouços comunicativos envolvendo a infância aumentam suas complexidades, como aconteceu no domínio da televisão, que precisamos seguir mais vigilantes ainda diante das maravilhas das novas tecnologias. As crianças precisam ter direito aos pensamentos e à imaginação em uma sociedade do conhecimento (e não apenas da informação), da sabedoria (e não somente da inteligência), da consciência (e não meramente da razão), da sensibilidade e dos vínculos afetivos (e não exclusivamente da conexão em redes). Afinal, a dimensão humana não pode prescindir da convivência social física.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/08/28/infancia-digital-e-direito-de-ser-humano.html