Iracema e o destino da lenda de Alencar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 16 de Abril de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Deus me perdoe se eu estiver me metendo onde não deveria, mas chega uma hora em que não dá para ficar calado diante dos efeitos do conflito entre as afirmações da lenda e da realidade. Neste momento penso em toda a boa vontade e no esforço de José de Alencar (1829 – 1877) para organizar o conceito de uma tradição para a sua terra natal ao publicar, há 140 anos, o romance “Iracema – A Lenda do Ceará”. Com a ampliação do entendimento contemporâneo do respeito ao outro, a visão de conformismo projetada por sua obra, torna-se confusa na cabeça desamparada das filhas da lenda. Iracema representa, antes de tudo, a fragilidade da mulher “índia” em seu deslumbramento com a figura salvadora do estrangeiro.

Uma lenda é a idealização de uma gente. Tanto que as lendas mais contundentes surgem da necessidade coletiva de organização de um sentido de destino. Há poucos dias no Espaço Unibanco de Cinema vi a exibição do filme “O Milagre de Berna – A Verdadeira História” e pensei muito sobre tudo isso. O filme do diretor Sönke Wortmann fala do tempo em que os alemães não conseguiam olhar uns para os outros, depois da derrota na Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e dos crimes repulsivos liderados por Hitler (1889 – 1945). Conta como a conquista da Copa do Mundo de Futebol pela seleção da Alemanha em 1954, na Suíça, ofereceu uma paixão “neutra” para que uma nação embrutecida e humilhada se reencontrasse num orgulho comum.

A minha ponderação com relação à Lenda do Ceará, planejada por José de Alencar, não visa em qualquer hipótese julgar no presente aspectos contextuais do passado. O problema é que a falta de ordenamento da compreensão da imagem que ele desenhou para guiar o nosso processo evolutivo virou um grande e velado impasse social e cultural. Ao ser exaltada pelo seu valor intrínseco a história de Iracema necessita apenas de atualização de significado. Do contrário, seguiremos vitimados pelos ares do fascínio que motiva as novas meninas “índias”, pobres ou ricas, a jogarem a sorte da salvação nos braços de qualquer aventureiro de fora que, depois de ter a posse e o gozo do seu sexo, do seu carinho e da sua hospitalidade, sente-se no direito de abandoná-las. Sem perspectivas sociais tangíveis é esse o sentimento de transformação que, nas pegadas da “virgem dos lábios de mel”, desfila pelo calçadão da avenida Beira-Mar e na zona de meretrício em que ironicamente o turismo sexual tornou a Praia de Iracema.

A fantasia de Iracema é a primeira expressão de um desejo reprimido de ascensão social que se vale da sexualidade para se realizar. Por essas regras imaginárias parece mais simples conquistar o reconhecimento externo da reinvenção sedutora como uma renovada convicção de que a vida pode ser diferente. A notícia de cada mocinha que é levada para ser “consumida” no exterior ou “usada” por aqui mesmo como “esposa” para servir de base a outros tráficos deveria provocar um retorno ao pivô central da discussão sobre essa mitificação fecundada em nossa tradição por José de Alencar. Enquanto prevalecer a sombra desse estigma da oferta de meninas, como destaque de nossas manifestações turístico-culturais, sofreremos o repuxo do nosso próprio desequilíbrio, como a esfinge grega a devorar os que não a decifravam.

A busca de soluções para os problemas da exploração sexual associada ao turismo precisa começar pela compreensão do imaginário de Iracema. Senão corremos o risco de não chegarmos à razão de muita gente jogar o assunto nas costas bronzeadas das fêmeas nativas que não saberiam se comportar decentemente na compulsão das suas vontades desde o início da curra colonial. Esse raciocínio acomoda o conflito das descendentes da personagem do grande romancista a eterna indagação se algum estrangeiro ainda as quer. E isso recai sobre os povos nativos como uma constante ameaça aos seus valores culturais. Não que o caso ficcional entre Iracema e Martim não pudesse ter acontecido, mas, certamente, observando com cuidado os relatos históricos essa paixão está bem longe de sintetizar o aguerrido choque cultural que nos fundou.

Chego a imaginar se a saída para o entrave simbólico de Iracema, como Lenda do Ceará, não seria encontrada pelo caminho traçado por Luiz Gonzaga (1912 – 1989) para resolver a questão do sentimento de abandono da terra natal no clássico Asa Branca, parceria com Humberto Teixeira (1916 – 1979). Na mais antológica das composições da dupla nordestina, a ave de arribação larga suas origens no último limite da sobrevivência ao fenômeno da seca. Para a história não ficar pela metade, ele fez com Zé Dantas (1921 – 1962) A Volta da Asa Branca, fechando a simbologia dos retirantes. Na primeira, o sertanejo dá adeus a Rosinha assegurando que voltará; na segunda, ele tem notícias de que está chovendo, volta para os braços de Rosinha e para cuidar da plantação. Assim, a narrativa se completa em seu caráter nômade e fecundo.

Mas José de Alencar matou Iracema no final do romance. Portanto, fechar o ciclo da lenda de Iracema com a superação do presságio do abandono, a exemplo de Asa Branca, é o maior desafio da nossa literatura. Enquanto isso, Fortaleza já tem quatro estátuas de Iracema espalhadas pela cidade, como se fossem solitárias meninas de rua: a de Corbiniano Lins (1965), na enseada do Mucuripe; a de Zenon Barreto (1996), na Praia de Iracema; a que foi executada por Alexandre Rodrigues, na lagoa de Messejana (2004) e a de Francisco Zananzanan, no Palácio do Governo (2005). O monumento de Messejana contou com a participação de uma modelo que, por conta disso, acabou num Reality Show e, simulando a intimidade do arquétipo alencarino, consagrou seu instante de celebridade ao sair nua em revistas masculinas.

Naturalmente, como no “Milagre de Berna”, esse não será o “Milagre do Ceará”. A matéria de capa da revista Playboy reforça a pior marca de Iracema, sob o título “Alegria de Português”. No índice, a notícia de “Natália Nara, a nudez selvagem da morena mais gostosa do Big Brother”. No texto, uma explicação de que “em 1500 eles chegaram por aqui e encontraram nossas belezas naturais como vieram ao mundo”. Na legenda de uma das fotos eróticas: “Vem logo, Martim. O jantar está pronto”. A revista recria Iracema como “O orgulho de Alencar” e se ufana da oportunidade editorial: “140 anos após a publicação do romance materializamos a virgem dos lábios de mel”. Com isso, a publicação está apenas explicitando o senso comum. Deixarmos que o destino da nossa lenda se resumisse a uma pin-up tupinambá.