Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 07 de Fevereiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Sempre me inquieta o fato de termos uma mescla social e cultural tão pujante e não conseguirmos transformar essa força em prática comum de oportunidades culturais, educacionais e econômicas. Vez por outra me pego imaginando sobre o que deveríamos fazer para nos aproximar mais do que tudo isso significa.

Outro dia, li na coluna de Matthew Shirts (OESP, 28/01/2008) um rápido exercício de como seria uma “prova de cidadania” brasileira, caso o Brasil fosse como os Estados Unidos, em termos de exigência de fidelidade aos valores e estratégias nacionais. Shirts, como bom gringo abrasileirado, vê na forma aberta como nos reconhecemos brasileiros, um dos nossos traços mais característicos.

Casos como o do carnaval, que se tornou um evento oficial em todo País, sendo uma festa popular desvinculada do Estado, são citados por ele como exemplos da nossa peculiaridade. No caso do futebol, ele sugere que ganhar o título é menos importante do que jogar bonito. A seleção de 1982, que elevou a improvisação ao patamar de arte, é mais lembrada do que a de 1994, que foi campeã. “Aquela parecia mais brasileira”.

A nossa democracia empírica também foi lembrada por ele como indispensável a quem pretenda respeitar os nossos valores culturais. O raciocínio de Matthew Shirts só desanda, embora com a licença do bom-humor, quando ele resolve propor algumas questões que poderiam fazer parte de um exame de cidadania brasileira. “Seria preciso saber as cores da Mangueira, identificar o Joãozinho Trinta e listar pelo menos três jogadores da seleção de 1970”.

Antes de sua fala se referir ao Brasil, o colunista expõe uma série de informações a respeito de como as provas de cidadania acontecem nos Estados Unidos, desde o final do século 19 até os dias atuais. O motivo da criação dos “cursos de americanização” foi o de inculcar nos imigrantes os valores daquele país. As aulas dirigidas às donas-de-casa ensinavam receitas de comidas consideradas típicas, enquanto outras tinham conteúdos essencialmente anticomunistas e antianarquistas.

Hoje, segundo Shirts, os cursos visam a preparar imigrantes para a prova de cidadania. “As questões giram em torno da história dos Estados Unidos, a organização do Estado e a simbologia da bandeira”. Ali ninguém enfia prego sem bater a ponta. Basta observar que todo filme estadunidense tem obrigatoriamente que mostrar a bandeira e, depois dela, uma lista de produtos, que vão de armamentos a fast-food. Afora isso, pode falar de tudo, desde que no final a moral da história ajude a fortalecer a idéia do quanto os norte-americanos são democráticos e a exaltar a importância de ser aliado dos EUA em qualquer situação conflituosa.

Não foi o que aconteceu com Bobby Fischer (1943 – 2008), a “ex-lenda” do xadrez mundial. Na adolescência ele foi campeão norte-americano. Com menos de trinta anos foi o primeiro gringo a ganhar o mundial desse esporte, antes reservado aos domínios da “inteligência” soviética. Ao derrotar Boris Spassky, em 1972, foi recebido pelo presidente Richard Nixon (1969 – 1974) na Casa Branca, como herói do duelo simbólico entre as duas maiores potências da Guerra Fria, e reverenciado pela indústria desportiva dos EUA, pela popularização que deu ao jogo de xadrez.

Entretanto, o maior enxadrista do mundo cometeu um erro de independência, ao jogar uma partida com o mesmo russo, na Iugoslávia, em 1992. Venceu, mas não houve festa. O que ocorreu foi um mandato de prisão, pelos simples fato da Iugoslávia integrar o bloco da Europa oriental, em situação de bloqueio de relações por parte dos Estados Unidos. Condenado por ter violado uma sanção estabelecida por seu país, somente em 2004 Fischer foi preso no Japão. Ao ser liberado em 2005 naturalizou-se islandês.

Morreu no último dia 17 de janeiro, em Reykjavík, na Islândia, onde se consagrara o gênio do xadrez. A mídia do mundo inteiro estaria transbordando de notícias e documentários sobre Bobby Fischer, se ele tivesse se comportado como um cidadão estadunidense é obrigado a se comportar. Para completar, Fischer comemorou o ataque de 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas, símbolo do terrorismo capitalista ianque, foram derrubadas por aviões da American Airlines. Declarou que o seu ex-país merecia o ataque, pelos massacres que têm cometido contra o povo palestino.

Na prova de cidadania norte-americana, o nome de Bobby Fischer não deve aparecer, nem como memória do xadrez. Fico pensando no comportamento brasileiro, com relação aos nossos craques do futebol que se mandam para a Europa e que jogam muito bem por lá, mas não rendem nada na seleção brasileira. Ao invés de esconjurá-los, de nunca mais querer vê-los, acabamos comprando as camisas dos times que eles jogam para os nossos filhos e até torcendo pelos times estrangeiros onde eles brilham.

Diferentemente do Brasil, onde o princípio da troca, do diálogo e da heterogeneidade inspira as nossas manifestações, nos EUA predomina o sentido de ocupação e de domínio, sobreposto à satisfação da realização humana integrada e complementar. A cidadania ianque é racional em seus aparelhos e itinerários, enquanto a cidadania brasileira desenvolve-se em complexos movimentos da multiplicidade, entre contradições, conflitos e superações.

O carnaval não estaria em uma prova de cidadania brasileira, primeiro porque a cidadania brasileira não carece de prova e, segundo, porque o carnaval é para ser sentido e não decorado. O Brasil acolhe imigrantes há mais de um século e se sente engrandecido com os valores culturais que com eles chegam para a amálgama da brasilidade. Devemos continuar sem provas de cidadania, embora mereçamos dar mais importância ao que somos em nosso composto de naturezas étnicas e sociais.

A definição de toda cultura depende de quem a olha, de onde a olha e com que motivo a olha. Os olhares sobre o Brasil deslizam por via de regra na epiderme, enquanto a vitalidade do País irrompe de dentro do nosso coração mestiço, onde acontece o mistério da transformação das condições historicamente impostas em benefícios cosmopolitas. A dificuldade de fazer a prova de cidadania no Brasil é porque somos uma sociedade que não depende de um ou outro padrão pré-estabelecido. Essa realidade não é tão acessível à compreensão dos bem-letrados preparadores de provas; tanto que eles passaram a chamar pejorativamente de “jeitinho brasileiro” a nossa rica experiência de flexibilidade.

A prova de cidadania no Brasil não dá certo porque aqui a busca de respostas nem sempre guarda coerência com a racionalidade. A cidadania que desejamos conquistar está mais longe, mais profunda e deve ser menos um decoreba cívico e mais um sentimento resultante da realização cotidiana. Por isso, carnaval e exame de admissão não combinam. A prova suspende a magia diante da lógica e provoca dissonância na linguagem das misturas. O enredo brasileiro é contado e cantado pelos efeitos do viço dos matizes e das dicções das culturas que formam a nossa sociedade.

Ao considerar a capacidade da sociedade brasileira de fazer uma festa nacional e oficial, sem ser oficial, como uma ação de cidadania, Matthew Shirts nos brinda com um olhar brasileiro de consideração a tudo o que tem sido construído no múltiplo e suas circunstâncias ímpares. Cada nação tem a sua maneira de descobrir como deve obter a base de compreensão dos seus sonhos e saberes. Carlinhos Brown diz em seu novo CD que “A gente ainda não sonhou” (Som Livre). Vamos sonhar. Os sonhos nos devolvem as pegadas da vida, nossos cheiros, caras e jeitos na evolução material e espiritual.