Itarema se descreve em hino feiro em
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 18 de Fevereiro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A movimentação na praça da Pedra Cheirosa, ocorrida no primeiro final de semana deste mês em Itarema, teve uma novidade que valorizou a festa de comemoração da independência política do município. No mesmo ambiente da feirinha de produtos artesanais e culinários típicos da região e do palco com espetáculos musicais, a população acompanhou a apresentação dos dez finalistas do concurso que elegeu o hino de Itarema. Como parte integrante da comissão julgadora, saí dali pensando sobre o quanto cabe a uma comunidade ter o estatuto da sua própria representação. Ao produzir, como dever de casa, a composição do hino da sua terra, os itaremenses fizeram, na realidade, uma exploração da sua própria capacidade de se enxergar e de se descrever.

A opção pela elaboração de um hino desenvolvido no vórtice escolar pode ser lida como uma feliz audácia do governo municipal de Itarema. Entre temer o risco de um fiasco e confiar na sensibilidade da população, o prefeito Robério Monteiro, decidiu pelo segundo caminho e acertou. Mais do que um concurso, o esquema operacional que entrelaçou educação, cotidiano, memória e sentido de destino, tornou-se um instrumental de saber e de noção de pertencimento. A significação da vida no município foi revolvida a partir do que está retido, refletido e almejado consciente ou não pelas pessoas.

O que de mais louvável aguçou a minha deferência por essa ação ter sido desenvolvida no campo da educação foi o fato dos hinos apresentados pelas escolas refletirem livremente o entendimento que aquela gente tem de si mesma. Distingo essa atitude porque ela sugere uma fuga das instâncias cultas tradicionais e alcança a capacidade criadora das pessoas comuns. Isso permitiu a existência de uma peça com deduções abertas e apta a pedir complemento contínuo por parte de quem a cantar, sem os engessamentos conceituais e marciais encontrados na grande maioria das obras do gênero.

A grandeza da simplicidade do Hino Oficial de Itarema, de autoria de Antônio Marcos Muniz Graça, da comunidade de Almofala, consiste na sua qualidade de carta-espelho, ponto de impulsão, ancoradouro e porto de partida. Ele tem entrâncias como o mangue e horizonte como o mar. Como uma embarcação de pescadores apaixonados, que ao retornar de farta jornada põem a vista à terra firme pelo braço de mangue do Porto dos Barcos, pelas águas do rio Aracatiaçu-mirim, no porto lagosteiro de Torrões, pelos bancos de areia branca acostados sobre a lama do manguezal, na Praia da Barra e do Farol de Itapajé, pela beleza dos alagados e camboas e por toda a faixa que se estende ao longo da Volta do Rio, Ostra, Espraiado e águas do Cachimbo.

A mobilização social para a criação do hino de Itarema, coordenada com eficácia pela secretária Nair Soares e sua equipe da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto, é um marco importante na educação do Ceará. Expõe indícios de possibilidades reais de redesenho no plano simbólico. Os hinos finalistas cuidaram, por exemplo, de recorrer ao topônimo Itarema, que em tradução livre do tupi quer dizer pedra cheirosa: “Quanto aos nomes que a ti foram dados / Pedra Cheirosa foi o que ficou”, diz a letra do hino vencedor. O caráter intuitivamente construtivista e a visão de processo que ensejou a elaboração das composições passaram naturalmente pelo decalque de outros hinos, através da repetição de frases feitas, de forma e de imagens. Versos como os que falam da fragrância nos “campos e vales”, de um dos hinos apresentados, estariam mais em linha se falassem de “mangues e mares”. Não poderia ser diferente, pois esse tipo de empréstimo faz parte da aprendizagem.

O que pude perceber em Itarema foi que, mesmo diante da presença renitente de uma educação colonial, os autores conseguiram combinar bem sentimentos próprios com hipóteses herdadas de verdades históricas. Souberam filtrar e realçar aspectos relevantes, dentro dos limites do universo de conhecimento de cada um. Foi a partir dessa constatação que a comissão julgadora resolveu escolher por consenso, e não com base em notas e médias, o hino que, conforme entendeu, teria mais as feições do município. E tomou a liberdade de fazer algumas recomendações para a avaliação do autor, antes do envio oficial do hino para a apreciação da Câmara Municipal.

O hino escolhido foi, portanto, aquele que calibrou o melhor conjunto melódico e poético, mas também o que expressou a melhor síntese dos elementos sociais, culturais, políticos e religiosos conciliáveis do povo do lugar. Itarema tem pouco mais de duas décadas de emancipação e está situada em uma região marcada por históricos conflitos, sobretudo no que diz respeito à resistência Tremembé. Mas ao procurar conhecer a nova escola, construída pelo governo do Estado com a finalidade de dar suporte aos saberes Tremembé, percebi que cresce o número de pessoas que vêm se dando conta de que o mundo está em profundo momento de mudanças e que, para Itarema, o reconhecimento e o respeito à causa indígena pode ter mais relevância e futuro do que a violência derivada da questão da terra.

Se o processo de estímulo à criação do hino de Itarema foi tão importante quanto a peça resultante da sua movimentação pelas escolas e pela comunidade, a sua utilização será ainda mais indispensável na evolução de uma sociedade que possa ser observadora e intérprete de si mesma. Assim sendo, toda vez que for executado, o hino poderá servir para impulsionar o olhar das pessoas em direção ao que ele representa e ao que está implícito em suas estrofes. A função de um hino é despertar, elevar, colocar calor nos lábios cidadãos e promover a autonomia dos grupos sociais.

Como nasceu no âmbito das escolas, nas escolas o hino deverá abrir espaços de curiosidade e compartilhamento de descobertas, possibilitando a reintrodução constante das pessoas em seus próprios mundos. E por ser tema transversal, interdisciplinar, tem autenticidade e legitimidade para ser cantado em eventos esportivos e solenidades oficiais. Ao se encantar com o seu hino, Itarema estará se encantando consigo mesma, criando um moto-contínuo de auto-estima, bom para a coletividade e para a prudência necessária ao seu desenvolvimento.