Jorge Caldeira e o Brasil
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quintas-feiras, 31 de Maio e 07 de Junho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Parte I, publicada em 31 de Maio de 2007

No universo dos mercados internacionais temos visto a queda do chamado Risco-Brasil como um fator importante para o aumento da atratividade de investidores estrangeiros no País. Esse padrão classificatório, estabelecido pelos escritórios de rating que prestam serviço às corporações e aos governos que comandam o sistema financeiro mundial, está favorável ao desenvolvimento brasileiro no cenário atual, mas nada garante que ele não possa ser alterado por interesses geopolíticos e econômicos fora do nosso controle. Para o Brasil, depender dos ânimos dos manipuladores desses indicadores também é um risco. Mas o que estaria realmente ao nosso alcance para conquistarmos uma estabilidade duradoura? Não tenho o menor receio de apostar na vitalidade plural da nossa cultura como essência do que poderíamos chamar de Chance-Brasil para o século XXI.

Cada vez mais reforço em mim a certeza de que o maior dos problemas brasileiros é o modelo mental de colonizado, perpetuado em nossas elites. O resto é subproduto dessa abominável fraqueza e do seu egoísmo desconcertante. Por feliz sincronicidade das idéias, eu estava pensando em como seria a criação de um índice com o qual pudéssemos medir nosso avanço na compreensão do que somos enquanto sociedade, quando assisti a entrevista do jornalista e escritor Jorge Caldeira no programa Conexão Roberto D´Ávila (Rede Cultura, 25abr e 2mai). Compilei e reprocessei alguns fragmentos da opinião desse brilhante intelectual, que vem se revelando nos últimos anos um grande pensador do Brasil, na tentativa de ampliar o debate sobre o que nos distingue como brasileiros.

Jorge Caldeira, 50 anos, foi editor do jornal Folha de São Paulo, das revistas Exame e Istoé, e, depois da publicação do livro “Mauá – Empresário do Império” (Companhia das Letras, 1994) vem revelando um jeito bem peculiar de pensar o Brasil, a partir da pesquisa histórica e da vida dos seus principais personagens, a exemplo do Padre Guilherme Pompeu de Almeida, cuja saga ele relata no livro “O Banqueiro do Sertão” (Editora Mameluco, 2006). O que mais me chama a atenção no pensamento de Caldeira é a maneira lúcida e ponderada com que ele procura organizar a essência da brasilidade em suas potencialidades e entraves.

O déficit educacional brasileiro, apontado com unanimidade como o grande nó do nosso desenvolvimento, é explicado por Jorge Caldeira como parte de uma política colonial de deliberada ignorância. Talvez essa informação em si não seja uma novidade, mas trazida ao contexto atual e considerando que boa parte da nossa elite ainda mantém o modelo mental de colonizado, a lembrança serve para mostrar o quão é difícil acreditar em uma mudança que parta dessas elites. Indo para a exemplificação dos fatos, Caldeira realça que a única norma que o governo colonial português cumpriu à risca foi a da quebra de todas as impressoras de livros que vieram ao Brasil até 1808, quando a corte se instalou no País.

Portugal jamais permitiu o ensino superior no Brasil. Quando D. João VI passou pela Bahia permitiu a criação da Escola Médica de Salvador e pronto. Por ocasião da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, o País tinha apenas 3% de alfabetizados e nenhuma faculdade. O ponto de partida do Brasil independente é, portanto, extremamente atrasado. A primeira universidade que funcionou no Brasil foi a USP, a partir de 1934, o que para Caldeira é um atraso monumental.

O Império foi um atraso também com relação à escola pública. Na época da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, existiam apenas 12% de alfabetizados no País. Caldeira destaca que a educação pública no Brasil é republicana. Com toda lentidão, com todos os obstáculos políticos, mais de um século depois, conseguimos chegar, agora, no governo Lula, às metas de alfabetização dos Estados Unidos de 1870, da Suécia de 1905 e do Japão de 1930. A política da deliberada ignorância tem travado o País ao longo dos séculos. A existência de programas como o PAC da Educação produz renovadas esperanças de que agora é para valer. Embora com avanços tímidos, a educação começa a não ser mais um meio tão raro como quando, para ter acesso aos estudos, as pessoas tinham que freqüentar os colégios jesuítas.

No plano da educação, mas tratando dos nossos conteúdos históricos e culturais, Jorge Caldeira enfatiza o quanto percebemos pouco os valores nativos na formação do Brasil. Pinça alguns traços culturais tupi-guarani para mostrar o quanto temos de valores moldados por essa cultura e não nos damos conta. Características como a da relação largada com outras culturas, tendo como a finalidade de engrandecimento, são completamente apagadas da história do país e essa omissão acaba falseando as discussões étnicas e raciais. Para ele, essas discussões ganhariam outra dimensão se partissem da compreensão de que a organização mesclada da nossa vida em sociedade é um valor de origem tupi, embora os portugueses, quando chegaram ao Brasil, já fossem mestiços.

Jorge Caldeira invoca da receptividade da cultura tupi-guarani o mito original do casamento com estrangeiro, como maneira de assimilar novos conhecimentos, novas experiências, tramar novas identidades e fortalecer as condições do viver. Esse é um legado dos povos nativos que ainda hoje se reflete na sociedade brasileira: ter alguém de cultura diferente na família brasileira é um valor. Caldeira acrescenta a esse conceito de acolhimento, o fato de a genealogia tupi-guarani ser desenhada com os nomes dos homens, mas com a linha de estrutura feminina. Era o homem que se mudava para a casa da mulher quando havia casamento. As relações familiares substituíam toda a existência de aparato jurídico para fazer negócio.

A adaptabilidade cultural também é uma herança nativa salientada pelo escritor na entrevista a Roberto D´Ávila. Ao recorrer a traços culturais do Brasil, ele põe na linha de frente dos nossos valores a operação do cotidiano baseada em relações pessoais. Neste aspecto, o valor da cultura popular é muito grande porque ela transmite as essências da nossa alma mestiça em sua grandeza humana. Tem muita coisa que ocorre no Brasil que não está na cultura escrita, nem na educação formal. Existe um País inspirado na oralidade que ainda não foi atingido sequer pela comunicação de massa. Falo de um Brasil oculto e sábio, formado por milhões e milhões de brasileiros traídos pela estupidez de suas elites.

O complexo de inferioridade presente na mentalidade de colonizado afeta as nossas possibilidades de desenvolvimento com equidade social. Jorge Caldeira diz com muita propriedade que não conhecemos na nossa cultura escrita os mecanismos que fazem o brasileiro funcionar, pensar e agir. Lendo a cultura brasileira não é possível chegar à média do pensamento das pessoas. Ele se refere ao livro Grande Sertão – Veredas, de Guimarães Rosa (1908 – 1967), publicado em 1956, como a primeira obra literária brasileira que conseguiu reproduzir o jeito de pensar das pessoas do Brasil profundo. É muito recente e assustadora essa observação, mas, ao nos darmos conta do que essa debilidade significa, encontramos a oportunidade de superá-la.

Parte II, publicada em 07 de Junho de 2007

O traço de sociedade aberta e empreendedora está presente no Brasil muito antes dessas características sociais serem um valor. Na entrevista que concedeu ao programa Conexão Roberto D´Ávila (Rede Cultura, 25abr e 2mai) o jornalista e escritor Jorge Caldeira ilustra essa questão com dados simples e diretos, ao dizer que no Brasil, a mais pobre das pessoas se vira como empreendedora e que somos uma gente que não tem medo de mudar com os outros. Esse comportamento era visto como desvio de norma, como erro, no Brasil colônia. O certo era o modelo da vida européia medieval.

Para exemplificar que o Brasil é uma sociedade bem mais aberta do que se imagina, Jorge Caldeira fala do funcionamento das eleições no País, instituído em 1826 e que, até hoje, só teve dois momentos na nossa história que os deputados não concluíram seus mandatos: no Estado Novo (1937 – 1945) e em 1968, quando foi instituído o AI-5, ato institucional utilizado para aumentar os poderes do presidente e permitir a perseguição desmedida das oposições. É realmente curioso como até a ditadura no Brasil fez questão de parecer democrata. O golpe militar de 1964 foi aprovado pelo Congresso Nacional e cada ditador presidente foi, por duas décadas, legitimado no parlamento.

A experiência brasileira de eleições contínuas é muito rara, na opinião de Caldeira. Segundo ele, somente os parlamentos da Inglaterra e dos Estados Unidos funcionam há mais tempo do que o do Brasil. A idéia de alguém ser eleito é natural na sociedade brasileira de um jeito difícil de ser explicado. O escritor deduz que se em Portugal não tem parlamento funcionando essa certamente não foi herança portuguesa. Lembra que Portugal era uma sociedade estática, onde, se tudo corresse bem, as pessoas morreriam ocupando a mesma posição em que nasceram.

A idéia de votar e de que a pessoa eleita pelo voto governa é um traço típico de uma sociedade aberta que está presente na cultura brasileira. O parlamento brasileiro vem do tempo do Império, quando a população de analfabetos era de 97%. A reflexão de Jorge Caldeira revela que, antes do presidente Lula, o Brasil teve apenas uma pessoa que saiu das classes desfavorecidas para chegar a governar o País. O padre Diogo Antônio Feijó (1784 – 1843) era filho de pais desconhecidos e foi eleito Regente do Império, o que hoje seria o equivalente ao cargo de Presidente da República. Apesar de um espaço de 167 anos entre Feijó e Lula, esse é um bom indício de sociedade aberta.

Os grandes entraves do desenvolvimento sustentado do Brasil residem ainda em uma ambigüidade de valores situada entre o caráter de sociedade aberta, fruto da cultura da miscigenação, e a insistência por uma sociedade fechada, defendida pelas elites privilegiadas pela tradição da nobreza. Essa ambigüidade cria uma série de transtornos sociais citados por Caldeira: do ponto de vista da nobreza, não tem cabimento alguém que está fora da linhagem conquistar algum poder; costumamos não dar valor às coisas que dão certo; tendemos a achar que o Brasil não é um bom lugar para empreender, esquecendo que temos grandes fortunas, grandes trabalhos e grande mobilidade social pelo interior.

A resistência ao crescimento brasileiro está, segundo Caldeira, no que foi o grande escravismo e no que ele gerou como sistema de poder. Quando a escravidão era pesada no Brasil, por volta do século XVII, ela reforçou o lado mais tradicional e menos igualitário da nossa sociedade. O sistema escravocrata impôs um freio na cultura empreendedora do brasileiro. O ideal de trabalho do escravo é ter o mínimo de trabalho possível, para se desgastar menos, já que não existe qualquer destino a construir. Por outro lado, o ideal do dono de escravo é o de não fazer nada. Todos esses dizeres de Jorge Caldeira levam a compreensão das razões do culto à desigualdade, tão manifesto na vida brasileira.

Grande parte do atraso persistente no Brasil ainda é reflexo dessa cultura do “eu sou superior a você”. Caldeira lembra que a história econômica brasileira dos séculos XVI a XVIII é de enorme crescimento, chegando a ser maior do que a economia de Portugal. Em 1800, elucida, a economia brasileira era maior do que a dos Estados Unidos e um século depois, em 1900, já era 12 vezes menor, proporção que de certa forma continua até hoje. Com isso, ele quer atestar que o grande desastre econômico brasileiro é o século XIX, quando o Brasil parou tentando fazer uma política econômica que fosse capaz de perpetuar a escravidão.

A vitória da política que decidiu por postergar a escravidão resultou na produção de uma elite retrógrada. Na contramão da nossa cultura de povo aberto, herdamos uma elite empenhada em criar uma sociedade fechada, conduzida por políticas feitas para concentrar renda e manter a riqueza dos descendentes da nobreza. Com esses argumentos, Caldeira comprova que a sociedade escravocrata é a grande fonte da nossa exclusão social construída, não por barreiras culturais, mas por políticas que protegem o poder econômico de uma minoria em detrimento dos acessos econômicos de outros.

Caldeira sintetiza muito bem essa questão ao dizer que a elite brasileira é uma elite de natureza colonial típica. Por isso é incapaz de enxergar o próprio País e de se identificar com ele. Tem pouca confiança nela mesma e na sociedade brasileira. Isso enfraquece a capacidade da nossa elite de formular e de assumir o seu papel. O autor de Mauá: Empresário do Império deduz que o problema do Brasil no século XIX não era ausência de capitais, era de prisão de todos os capitais à economia do tráfico de escravos. E alerta para o fato de que o Brasil vem passando, nas duas últimas décadas, por algo parecido com o início do século XIX. Faz muito sentido, pois os esforços das elites brasileiras, para não perderem os privilégios adquiridos pela concentração, parecem hoje tão desesperados quanto o que ocorreu na luta pelo prolongamento da escravidão.

Jorge Caldeira acredita que não existe sociedade mais globalizada por dentro do que a brasileira. Por isso entende que as movimentações de globalização têm tudo para nos ajudar a compreender os nossos valores. E tem razão quando diz que situações como a consolidação da União Européia podem servir para o Brasil se descobrir em sua cultura. Ao vermos que países como França e Alemanha, que tiveram cinco guerras durante o século XIX, estão se esforçando para poderem conviver sob as mesmas regras, coisa que já fizemos, é possível despertarmos para os nossos valores integradores nacionais, como a língua, a moeda e o mercado comum que somos e temos.

A convivência entre diferentes é uma coisa que já existe no Brasil, só que ainda não é um valor percebido em sua dimensão estratégica. Para Caldeira, a miscigenação é o grande ativo do Brasil na era global. Ele vê a conjuntura atual como uma oportunidade para aproveitarmos esse valor e promovermos mudanças, nos aproximando mais do que somos e usufruindo melhor das nossas relações com o mundo. Talvez, a partir do momento que nos enxergarmos mais, possamos passar a confiar no potencial e na capacidade democrática de nossa sociedade para resolver os nossos problemas. Encontrar uma elite a essa altura é o grande desafio brasileiro.