José Cortez em versão integral
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 04 de Março de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Um dia, José Xavier Cortez estava em sua livraria, quando foi surpreendido por assaltantes. Com seu jeito desassombrado e espirituoso de encarar as circunstâncias, perguntou ao chefe do bando se ele tinha filhos. Ao receber uma resposta afirmativa, ofereceu alguns livros infantis para que o ladrão levasse para casa, sob o argumento de que assim aquelas crianças poderiam se preparar para ter uma vida diferente da do pai. E o bandido saiu com os braços cheios de livros.

Essa incrível capacidade de municiar as diferenças para que encontrem seus pontos de interioridade é uma das revelações do documentário “O semeador de livros” (42min5seg), co-produzido pela Ciência & Arte e TV PUC/SP, com direção de Wagner Bezerra e patrocínio da Petrobrás e do Governo do Rio Grande do Norte (Lei Câmara Cascudo), lançado na festa de 30 anos da Editora e Livraria Cortez, realizada no Tuca, Teatro da PUC, na segunda-feira passada, dia 1º, em São Paulo.

Mais do que por méritos cinematográficos, esse filme deve ser valorizado por abordar aspectos orgânicos da trajetória de um homem que transformou o aprendizado da luta pela sobrevivência em uma forma de dizer que, para valer a pena, a vida precisa de ideais e, mais do que isso, precisa que os ideais se transformem em prática cotidiana. Assim, em versão integral, pode-se perceber de onde e como o editor José Cortez tira energia para exercer a sua destacada interferência positiva na formação da cultura brasileira.

O Cortez é um educador, sem nunca ter sido docente. A Cortez é uma instituição de ensino, sem nunca ter sido escola. Nos últimos 30 anos ambos vêm contribuindo para a formação de professores, estudantes e pesquisadores das áreas de Ciências Humanas, com ênfase especial para a Educação, ponto fraco do Brasil, mas ponto forte da Cortez. Nomes como Emília Ferreiro, Paulo Freire, Pedro Demo, Marilena Chauí e Márcio Pochmann estão entre os autores dos mais de mil títulos do catálogo atual da editora.

Mas o agitado José Cortez não leva os mais consagrados e os mais novos autores brasileiros apenas às salas de aula e bibliotecas de todo o Brasil, leva também autores como Boaventura de Sousa Santos e Edgar Morin para dançar forró no restaurante Andrade, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde a carne de sol comanda a culinária nordestina. Como autor editado pela Cortez também já fui com ele ao forró da rua Arthur de Azevedo, 874. Naquele dia, o xote, o xaxado, o baião e o miudinho eram puxados pelo Trio Piauí, num repertório de arrasta-pé à base de zabumba, sanfona, pandeiro e agogô. É um ambiente muito agradável, as pessoas dançam felizes, comem felizes, aplaudem umas às outras e se cumprimentam fraternalmente.

O diretor do documentário, Wagner Bezerra, é afilhado de José Cortez e lembra que o primeiro livro que ganhou foi um presente do padrinho. Essa relação afetiva entre diretor e protagonista rendeu sentimentos puros como a escolha para trilha sonora da música “Voltando à minha terra”, do cantador paraibano Severino Nunes Feitosa, cujo refrão afirma o caráter bucólico da obra: “o que não posso tirar / nunca da minha lembrança / é um pedaço de terra / que vivi quando criança”. Esse é o Cortez.

Ser integral é a sua marca registrada. Ele sempre se comunica com o próximo. Sempre parece acreditar que há alguém com algo mais a dizer e a acrescentar no fluxo das ideias e das crenças, que constituem os diferentes veios sociais e culturais. É cidadão do seu tempo. E o seu tempo é o tempo da valorização das pessoas e do multiculturalismo inspirado na compreensão do outro. Tem visão abrangente, sensibilidade e faro para escolher o bom autor, o bom livro. Como genuíno agente de leitura, sua satisfação é dar valor ao pensamento e ampliar o debate; como empresário, é manter uma comunidade de apaixonados por livros vivendo desse instrumento de transformação.

Ele rejeitou o pedantismo e não se deixou contaminar por qualquer tentação de soberba, postura comum a muitos dos que ascendem no mundo da cultura. Independente do sucesso que alcançou, Cortez continua simples e impulsionado por uma sofisticada consciência da sua vocação pela democratização do conhecimento. Fala como é, sente como sente, age como age, vive em primeira pessoa, da mesma forma que faz a narrativa do documentário. Tem a virtude de acreditar na liberdade de ser autêntico, qualidade chave na produção de convergência entre as subjetividades de autores e leitores.

Ao criar a Livraria Cortez e depois a Cortez Editora, três décadas atrás, ele estava inventando uma brigada de fomento à alma brasileira, armada de recursos para a auto-interpretação e de subsídios para o diálogo com outras culturas. A Cortez é uma editora insubmissa, de tamanho médio, que enfrenta as assimetrias do mercado brasileiro com um time de talentos que abraça o livro com carinho, com apego e paixão. Nesses 30 anos de atividade editorial, essa gente trabalhou para o fortalecimento de toda uma geração de educadores e cidadãos.

O documentário de Wagner Bezerra celebra os 30 anos da Cortez Editora, contando a história de como o seu fundador se reinventou sem deixar de ser ele mesmo. O que parece um paradoxo é na verdade uma sabedoria. José Xavier Cortez saiu do sítio Santa Rita, em Currais Novos, sertão potiguar, onde trabalhava como agricultor e garimpeiro, e passou por poucas e boas, como marinheiro, lavador de carros, morador de estacionamento, manobrista e vendedor de livros proibidos no período da ditadura militar, para poder se formar em economia, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP.

Por sua reconhecida participação ativa na capital paulista foi condecorado em 2005 com o título de cidadão paulistano. Todavia, o compromisso e a capilaridade da influência de José Cortez na cultura e na educação do País fazem desse editor uma das respeitadas personalidades brasileiras da atualidade. Em três décadas de trabalho intenso, conquistou lugar cativo na galeria dos grandes editores do Brasil, ao lado de Monteiro Lobato, José Olympio, Ênio Silveira (Civilização Brasileira), Caio Prado Jr. (Brasiliense), Pedro Paulo Moreira (Itatiaia), Jorge Zahar, Waldir Martins Fontes (Martins Fontes) e Fernando Gasparian (Paz e Terra), entre outros.

Cortez é um sujeito popular, no sentido de estar identificado com as pessoas mais simples, mas é ao mesmo tempo um cidadão incomum. Ele tem a emoção, o sentimento de pertença, o amor pelo que faz, um coração esperançoso e uma série de atributos que o levam a superar as dificuldades, como um exercício de fortalecimento de sua fibra. No ano passado, ficou muito abalado com a morte da sua querida Potira, a mãe e guardiã do espírito familiar da Cortez, com quem foi casado por mais de 40 anos. Entretanto, em respeito e atenção ao que ela significou e continua significando para todos os que fazem a editora, ele parte para 2010 comemorando o muito que ainda tem para ser feito.

Por ter a coragem de seguir publicando o que é bom e significativo, sem se deixar intimidar pela pressão do mercado, a Cortez Editora é parte do patrimônio de um País que está começando a desconfiar que tem um lugar como protagonista no mundo e que para honrar esse lugar é preciso ler. O aniversário da Cortez nos diz que o mercado editorial brasileiro ainda tem espaço para editores que acreditam que a formação cultural é premissa imprescindível ao desenvolvimento.