Marina e o fiel da balança verde
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 22 de Maio de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O anúncio da saída da ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente, MMA, no dia 13 passado, deixou o governo federal com um desconcertante vazio existencial, pois revela uma instabilidade orgânica na política de condução de um governo utópico paralelo ao governo possível adotado pelo presidente Lula desde o primeiro mandato. Na questão ambiental, a presença de Marina estabelecia o fiel da balança verde brasileira, sobretudo no que diz respeito aos temas amazônicos.

Criada em um mundo onde as lendas dizem que a floresta é pródiga e abundante, embora com recursos esgotáveis, Marina é movida pela inspiração da mata em sua consciência política ecológica. Essa compreensão, de quem faz parte, tende muitas vezes a ser confundida com entrave à integração das questões sociais, ambientais e econômicas.

Quando o presidente Lula, com sua retórica imagética, diz que o pedido de demissão da ministra o surpreendeu como se fosse a decisão de uma filha que resolveu informar ao pai que estava saindo de casa, ele simplesmente desinveste o valor perdido para criar as condições de substituição imediata por outro, sem fomentar lembranças do que precisa ser abandonado. Como reação ao impacto da ausência, dentro da lógica política, ele pode até estar certo. Na política não é prudente deixar terreno fértil baldio para semeaduras da oposição.

Acontece que nem tudo no mundo político deve ser reduzido apenas a estratagemas da paranóia do poder. No caso de Marina, Lula não deveria fazer de conta que não tem a noção do que perdeu. A situação é atípica, bem diferente de outros ministros próximos ao presidente, que caíram por atropelarem-se nos próprios passos. O afastamento de Marina restringe simbolicamente a já escassa representação da participação popular no governo e atormenta a alma solidária da república.

Essa adulteração da medida da crença repercute nas expectativas de sustentabilidade. Nas balanças antigas, havia dois pratos e um ponteiro entre as duas. De um lado se colocava o peso e do outro a mercadoria a ser pesada. Quando o ponteiro estava em equilíbrio dizia-se que o peso estava certo. Esse ponteiro é o fiel da balança. Recorro a essa analogia para dizer que entre a luta pela defesa do meio ambiente e a necessidade de exploração racional da Amazônia, Marina Silva vinha sendo esse ponteiro há mais de cinco anos.

A presença nos quadros federais de pessoas com a história, a disposição de luta e a dignidade de Marina Silva, coisa rara na política, baliza os olhares cidadãos e dão a impressão de que por trás do que está acontecendo, deve haver uma outra missão sendo posta em prática, sendo construída com paciência e parcimônia.

Tenho dificuldade de desconfiar, quando confio. Ando sempre com uns versos de Vital Farias na memória, me dizendo que “o que se corta num segundo leva tempo pra vingar” (Saga da Amazônia). Com essa advertência poética procuro estimular em mim a defesa da confiança: “Para fazer isso, o presidente deve estar vendo o que não consigo ver”. E sigo me perguntando: “O que será que ele sabe que não pode dizer?”. Assim, de interrogação em interrogação, vou evitando perder as esperanças.

No episódio da queda de Marina Silva, a lealdade da ministra ao presidente foi lamentavelmente retribuída com indiferença. Logo ela, que tem um histórico semelhante ao dele, em versão feminina. A resiliência, ou seja, a capacidade de regeneração diante das adversidades, é uma característica de ambos. Ao lado de Lula, Marina é a maior referência brasileira dessa capacidade. Os dois são “Silva”, o sobrenome genérico de toda gente que, mesmo diante das injustiças e das dificuldades, consegue usufruir as pequenas coisas, ter satisfação de viver e de encontrar força e coragem para lutar pelo que acreditam.

A história de Lula da Silva na diáspora nordestina, na saga do metalúrgico que liderou os trabalhadores brasileiros a construírem um partido político e a conquistar a Presidência da República, pelos nossos complexos atalhos democráticos, se confunde com a de Marina Silva, nascida nos seringais amazônicos, e que migrou para a cidade para ser alfabetizada na adolescência, empregada doméstica, fazer o curso de História, suceder o líder seringueiro Chico Mendes (assassinado em 1988), se eleger vereadora, deputada estadual, senadora e ser nomeada por Lula para o MMA.

Durante o período em que passou como ministra, Marina conseguiu reduzir a permissividade com relação à devastação florestal e à exploração do trabalho escravo, criar o Serviço Florestal Brasileiro, fazer com que o Conselho Monetário Nacional suspendesse a concessão de crédito oficial aos municípios que mais desmatam e executar a implantação de novas unidades de conservação. No ministério ela falou a voz dos povos da floresta, tendo a fragilidade do próprio corpo como testemunho de quem ingeriu o mercúrio das águas contaminadas dos rios.

Entretanto, no choque com o crime organizado, com a ilegalidade, com o contrabando de riquezas e com artimanhas das bancadas parlamentares de interesse do agronegócio, das madeireiras, das mineradoras e do latifúndio, amargou sucessivas derrotas no que se refere aos alimentos trangênicos, ao enfraquecimento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, Ibama, a Usina Nuclear de Angra 3 e até a licença de importação de pneus usados, dentre outras ameaças à sustentabilidade.

A Amazônia, como o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, bem concebeu é um dos quatro pontos estratégicos do País, ao lado da oportunidade educacional, da oportunidade econômica e da Defesa. Não pode ser tratada como mero instante fugaz do presentismo, desconsiderando as perturbadoras peculiaridades da sua multiplicidade de problemas e o seu sentido de revisão histórica, social, cultural, econômica e ambiental.

A combinação de desenvolvimento com preservação é fundamental para o Brasil e para o mundo. Marina, mesmo tendo a coragem de perder muitos dos embates que vinha travando no MMA, era uma garantia de que havia alguém de relevo profundamente ligado à floresta, atuando diretamente como fiel dessa balança. Mas o governo entendeu, e com certa razão, que ela tinha uma concepção idealizada demais para conduzir a aplicação estratégica de aceleração do crescimento na região. Tanto que o presidente Lula entregou a coordenação do recém-lançado Plano Amazônia Sustentável, PAS, a Mangabeira Unger, por considerá-lo mais isento no processo.

O governo brasileiro é formado por um punhado de poderes desarticulados e concorrentes entre si. A agenda ambiental é um estorvo para muitos dos “donos” desses poderes. Marina exerceu a paciência o quanto pôde. Deu prova de muita maturidade nesse jogo em que as aparências se exibem com mais realidade do que o real. Não teve jeito, foi deixada de lado; cumpriu-se à elisão do referente e ela volta a ser senadora. O presidente até tentou contemporizar o problema, dizendo que Marina seria a “mãe do PAS”, mas ela, utilizando-se da mesma figura evocada por Lula, negou que valesse a pena ser mãe para os outros criarem o filho.