Marketing social não existe
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tem sido cada vez mais crescente o número de empresas que apelam para as ditas vantagens filantrópicas, na tentativa de serem percebidas como organizações com responsabilidade social. Essa tendência nasceu casada com a idéia de que o consumidor está amadurecido em suas exigências cidadãs e, conseqüentemente, na hora de decidir uma compra, associa produtos e serviços à prática social de quem os oferece. Como no íntimo da maioria dessas empresas esses valores não passam de artifícios de baixa historicidade e reduzida solidez conceitual, para tornar a qualquer custo seus negócios mais lucrativos, observa-se um inconsistente festival de assistencialismos, mascarados pelos moldes de uma ilusão chamada marketing social.

Enquanto sociedade, precisamos estar atentos para não confundirmos situações emergenciais com regularidade desejada, deixando que a exceção vire regra. O uso derrisório das ferramentas de marketing, com o intuito de beneficiar imagens empresariais e conquistar a simpatia de uma minoria de consumidores privilegiados, com base no infortúnio da grande massa de excluídos, é condenável. Sem dúvida que muitas das campanhas de “solidariedade” que temos visto acontecer, agregam algum paliativo evanescente em focos sociais marginalizados, sofisticando a dependência. Em momentos de precisão, fica difícil pensar se o “bom samaritano” não é, na verdade, um cleptomaníaco lavando dinheiro em ação de graças.

Para essa gente, a miséria é tão acessória quanto um air bag. O importante é ter como se proteger na hora do choque. Sair são e salvo. O resto o seguro paga. Provocar acidente, com tamanha regalia, só poderia mesmo era virar hobby. E no mundo dos sonegadores de impostos, dos concentradores de renda, dos provocadores do acidente da desigualdade social e dos que já fizeram o pé-de-meia no exterior para fugir do sucesso da miséria incontrolável, esse estranho e lucrativo lazer ganhou o nome de marketing social. Uma farsa técnica, que rompe com as regras mais elementares da polidez humana e empurra mais e mais os excluídos à condição de pedintes, aviltando nossas reservas de indignação.

A caridade sempre foi praticada por razões compensatórias de culpas e remorsos dolosos e culposos, embora tenha servido de meio salutar aos que intuitivamente pretendem elevar o espírito fazendo pequenas diferenças. Ela é a argamassa do alicerce que dá sustentação ao nosso hábito assistencialista. Sobre as suas paredes, pouca chance há para a construção da cidadania. Ajudar é o verbo mágico da submissão atávica. Nas campanhas de paternalismo marqueteiro, percebe-se o cuidado na maquiagem da intenção, pelo uso farto da palavra solidariedade. Traídos pela carência, acabamos esquecendo que solidariedade pressupõe uma ligação recíproca com independência das partes, o que não é o caso.

A onda está ganhando a adesão de marolas que reforçam essa interjeição muda. Já tem ranking das maiores e das mais eficientes entidades filantrópicas ligadas a marketing social, com direito a prêmios pelas boas ações cometidas. Há momentos em que fica no ar a impressão de que tem mais gente vivendo de promover o assistencialismo social de mercado do que a quantidade de pessoas por ele beneficiadas. Virou meio de vida, virou negócio, superposição, câmbio paralelo do assistencialismo oficial. Aliás, o problema não é de esfera pública ou privada, mas sim do mesmo sentido de favor, de troca desproporcional, através de mecanismos seletivos. Não existe nada de novo no envolvimento de organizações sociais para a prática de benesse filantrópica e assistencialista. Estão aí os clubes de serviços, a maçonaria e as primeiras-damas para não deixar ninguém mentir. O marketing social não existe porque é a mesma coisa e almeja a mesma finalidade, mudando apenas o nome e o jeito de motivar.

A mobilização da sociedade para a superação das condições emergenciais que nos prendem ao plano escorregadio do subdesenvolvimento crônico, precisa ser estimulada fora do âmbito da esmola. Ao invés de ficarem na malandragem evasiva, para causar boa impressão com a miséria dos outros, os promotores dessas empreitadas poderiam ganhar bem mais dando impulso à empregabilidade, melhorando salários e condições de renda da população. Se o problema for ter quem compre, para garantir a vitalidade dos negócios, com o fortalecimento da base econômica coletiva, o poder de consumo se forma automaticamente e o resto é uma questão de competitividade e de conquista das pessoas pela capacidade de cooperação social de cada empresa.

A nossa decantada Constituição Federal, de 1988, tenta quebrar com a acepção de necessitado contida no conceito de assistência social e altera o termo para seguridade. A idéia é boa e sinaliza para o exercício de universalização dos direitos sociais, porém não consegue nem ser absorvida nem encontrar repercussão transformadora. O acesso à educação, saúde, terra, moradia, transporte, alimentação, lazer, entretenimento, bens culturais e informação de qualidade, ainda é visto como um perigo maior do que o estopim que se mantém aceso para a crescente marginalidade explosiva. Doando o excedente da sonegação, garantindo a sujeição forçada pela privação e segurando as rédeas do controle da criatividade e da capacidade de produzir da maioria, muitos dos nossos dirigentes das esferas pública e privada investem sem hesitação nesse auto-engano e o chamam astuciosamente de marketing social.

Marketing que dizer troca. É um instrumento inadequado para a resolução de problemas sociais. Já bastam os políticos desonestos que sobrevivem do assistencialismo tacanho. A responsabilidade das empresas, no que diz respeito à melhoria do ambiente onde estão instaladas, em tese não deveria ser tão diferente da responsabilidade das cidadãs e dos cidadãos que conscientemente contribuem de alguma forma para a elevação da auto-estima da população e para a alteração do nosso quadro de excludência social. Como toda regra tem exceção, muita gente e algumas organizações têm zelado pontualmente pelo bem-estar coletivo e criado possibilidades para uma vida mais saudável, o que é bom para todos, embora insuficiente. Mas esse negócio de por um lado oculto ser responsável pela fomentação da miséria e, por outro, aparecer com riso de manequim em coloridas peças de publicidade, balanços sociais maquiados e fastidiosa propaganda, é pura necrofagia social.