No processo de adaptação do ser humano, os sentidos da audição e da visão ganharam destaque na produção de respostas aos estímulos do meio. Essa distinção passou a ser responsável por parte significativa das nossas memórias, até mesmo por contemplarem também sensações térmicas, olfativas e outras reações perceptivas para a exploração das possibilidades oferecidas na permanência do ontem e do que há-de-ser.

Por conta desse alcance multissensorial na preservação de estados de consciência e na modelagem de diferentes alteridades, sons e imagens foram reunidos em museus que têm evoluído em todo o mundo. No estágio atual, são espaços em que as tramas entre frentes de pensamento não funcionam para a domesticação do tempo em linhas cronológicas, mas para deixá-lo livre na organicidade dos acontecimentos, das lembranças e da nossa vocação fabuladora.

A fraqueza existencial da atualidade, diante da supremacia do consumismo, dos abalos neofascistas e do autoengano da visibilidade a qualquer custo, começa a ser aliviada quando se descobre valor nas vibrações e visualidades, pelo movimento de campos de abstrações e ligações de nodos referenciais no jogo dos códigos. Por isso, um bom Museu da Imagem e do Som (MIS) é aquele que não uniformiza, nem se submete a grupos de dominância estética e política, mas o que permite associações muitas vezes vistas e ouvidas como não associáveis.

Praça do novo Museu da Imagem e do Som (MIS – Ceará), com nova estrutura à esquerda e a casa histórica à direita. Foto: Divulgação / Instituto Mirante.

Em Fortaleza estamos caminhando para ter um MIS admirável. Depois de 43 anos funcionando basicamente como arquivo, o museu da memória audiovisual cearense volta-se para ser um espaço de perspectivas comunicativas. Revitalizado e ampliado, com atualização tecnológica de ponta, programações atraentes e uma praça para copresenças físicas diversas, o MIS Ceará é um lugar propício ao exercício da disposição mental interativa.

O diretor Silas de Paula tem dito com valioso poder de síntese, força conceitual e visão cosmopolita que o diferencial do novo MIS é o Ceará: “Só nós temos o Ceará”. Essa é uma grande missão, considerando que nós, cearenses, fomos exilados em nosso próprio desconhecimento do que somos por políticas de apagamento de manifestações históricas e práticas cartoriais por parte dos órgãos de cultura, o que nos levou a ser tolerantes com os descasos da nossa memória.

No momento o MIS está fazendo a organização do acervo, a catalogação adequada ao novo propósito e restauros digitais para poder efetivamente entrar na fase de dinamização do Ceará acústico e luminoso, inclusive com condições de receber pesquisadores externos e outras pessoas interessadas por memórias cruzadas e simulações de tendências. Isso ainda levará um bom tempo e requererá financiamento à altura da tarefa.

A gestão do MIS Ceará e sua equipe técnica revelam que estão agindo em linha com o discurso quando abrem o vídeo de apresentação do museu (disponível no YouTube) com o som de triângulo dos vendedores de chegadinha, uma espécie de hóstia profana, rústica e crocante das delícias populares de rua. Pode parecer simples, mas é com esse tipo de vocabulário sonoro e imagético que poderemos construir pontes para novos enfoques e hipóteses perceptivas da cearensidade.

Nesse sentido, tudo pode ser enxergado e ouvido: a forma como a mulher, a criança, o negro, os povos originários e o mestiço são tratados na nossa música e nas artes visuais; artistas de outras terras que pintaram, fotografaram e cantaram o Ceará; sonoridades e imagens da fé na fenomenologia do Padre Cícero; casacas-de-couro dos Inhamuns; ferros dos maracatus; tibungos de copo em pote d’água dormida; sons da natureza que habitam os centros urbanos; enfim, são tantos os estranhamentos e tantas as familiaridades da geografia humana cearense e suas paisagens visuais e sonoras.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/03/27/memorias-de-sons-e-imagens.html