Mensagem dos homens do tempo das
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 20 de Agosto de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Não é todo dia que temos a oportunidade de estar dentro de uma caverna decorada com obras-primas das artes plásticas universais, desenhadas entre dez e cinqüenta mil anos atrás. Exposição permanente que vi com os meus filhos nessas últimas férias pelo interior. O sítio arqueológico de São José do Piauí faz parte do conjunto estilístico da chamada tradição nordestina, que representa o maior acervo contíguo de pinturas rupestres da Terra. São as pontas mais profundas de nossas raízes, inexplicavelmente esquecidas em plena caatinga, num cenário pedregoso ornamentado por esculturas naturais formadas lentamente pelas águas e pelos ventos em uma região que um dia foi o ponto de encontro entre a floresta amazônica e a mata atlântica.

As pinturas que encontramos no alto do Morro do Letreiro apresentam tonalidades pardacentas com predominância de traços avermelhados, da cor da ferrugem e ocre. Alguns pintados sobre fundo esbranquiçado. Vimos também gravuras trabalhadas nas pedras e o mais surpreendente: dois panelões de mais de um metro de diâmetro e de profundidade, modelados na rocha interna do chão da caverna, com destacado apuro técnico de corte e polimento. Para que serviriam aqueles recipientes enormes? Conservar alimentos, armazenar água ou para algo ritual, além do cotidiano? Essas e outras interrogações sobre a capacidade humana de simbolizar e de alterar a natureza começaram a me aproximar dos impulsos mentais das pessoas que utilizaram aquela caverna como lugar de fuga, moradia e ponto de projeção dos valores universais da humanidade.

Por alguns instantes o meu pensamento correu simultaneamente o passado e o futuro em busca dos sinais de uma novidade primitiva. Vivemos um momento de intensa necessidade de organização dos sentidos. Do vão da caverna olhei para o tempo cinza da mata seca e pensei se não estaria tendo as mesmas incompreensões que um dia os nossos antepassados tiveram e foram capazes de clarear, senão não estaríamos aqui. Senti a presença da ancestralidade e renovei minha crença no que podemos ser. Tinha ido com os meus filhos descobrir cavernas perdidas e descobrimos uma janela para o céu azul, onde a vista nada pode alcançar além do nosso próprio firmamento interior. Vi a imaginação corporificada nas crianças e as crianças provocadas pelo seu amanhã.

Pensei nos conflitos da vida e nos saberes acumulados. Pensei na saída da caverna rumo ao prédio onde moro. Somos esses seres tanto tempo depois. O hipertexto da humanidade. Estamos aqui. Foi possível chegar. Essa travessia merece atenção e respeito. Luas e luas se passaram para que criássemos parâmetros tribais e comunitários de superação. Viver. Ah, viver! Como não crer, como não ser? Inventamos a cooperação, a complementaridade, o compartilhamento, a solidariedade, a tolerância, a justiça, a liberdade, a confiança, a dignidade, a paixão, o amor, a contemplação, a fé, inventamos o futuro. É isso mesmo, inventamos o futuro! Mas inventamos também os seus obstáculos: egoísmo, inveja, cobiça, ódio, soberba, alheamento, insensatez, falsidade, estupidez, corrupção. Escutei tudo isso no grito silencioso da boca da caverna.

Que bela sensação essa de repassar como uma brisa valores que atravessam o tempo. Deu vontade de registrar essa emoção para quem quiser ler hoje ou algum dia nos arquivos do jornal, nas paredes eletrônicas do domínio virtual da realidade. Deve ter sido algum sentimento parecido o que levou aqueles homens e mulheres pré-históricos a fixarem na rocha representações da vida. A mensagem dos homens dos tempos das cavernas está no horizonte de qualquer tempo. E o tempo não é tão fugaz assim como ditam os calendários. A nossa consciência sobre ele poderia ser mais relaxada. Dispomos de um patrimônio de valores edificantes que não pode ser simplesmente desprezado por conta de algumas frustrações circunstanciais. Os momentos de fraqueza geram imobilidade somente enquanto não percebemos que eles fazem parte do refinamento dos seres inacabados que somos.

Diante das crises que ameaçam esperanças, mais do que aturdidos com o bafafá reverberado pelos que se locupletam com a perturbação das pessoas hesitantes, devemos aguçar em nós o pensamento sobre o que os nossos ancestrais esperaram de nós e sobre o que esperamos das gerações futuras para podermos imaginar o que nos espera. Essa leitura depende mais da nossa disposição de sentir a dimensão do que está posto no jogo da vida do que da nossa capacidade de decifrar as inscrições preservadas nas cavernas.

A professora Niède Guidon, o maior ícone da nossa arqueologia, descarta a possibilidade de chegarmos a uma interpretação científica do que os temas simbolizados nas rochas poderiam significar para aquela gente, devido à inexistência de um código (revista “Nossa História”, Ed. Vera Cruz, edição de agosto/2005, com matéria de capa sobre “Pré-história no Brasil”).

As cavernas com as quais nos deparamos em São José do Piauí, estão distantes do Parque Nacional da Serra da Capivara, no município de São Raimundo Nonato, de onde Niède Guidon, à frente da Fundação do Homem Americano, trava uma luta desigual com a comunidade científica subordinada aos interesses dos Estados Unidos. Entretanto, faz parte da mesma zona de signos arqueológicos. As imagens recorrentes encontradas em toda a área da tradição nordestina não são suficientes em si para explicar exatamente o que os nossos ancestrais queriam dizer. Mas pelo simples fato de existirem revelam a necessidade de dizer alguma coisa, de não esquecer alguma coisa, de se ver representado e perpetuado pelo exercício da capacidade de simbolizar. Olhando para os meus filhos, deslumbrados com a atualidade daquelas mensagens, reforcei em mim a convicção de que não há como escapar de termos futuro. Não porque estamos necessariamente sabendo traduzir o que se passa ao nosso redor, mas porque ainda não perdemos a capacidade de sentir e de dar sentido e forma ao que somos capazes de imaginar.