Microestórias poéticas de Aldir Brasil Jr
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 18 de Março de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O Aldir, 41 anos, é uma pessoa de mente privilegiada. Doutor em Matemática pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Departamento de Matemática da Universidade Federal do Ceará (UFC), soube mesclar a inteligência com a consciência e nunca deixou de fazer contos e poemas. No ano passado sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) que, como todo “derrame”, o deixou com comprometimentos na fala e nos movimentos corporais. Vem em processo de reabilitação com os necessários cuidados da fisioterapia e da fonoaudiologia. Mas, posso dizer sem medo de errar, que o fator mais relevante na sua recuperação tem sido o fato de ele não ter parado de escrever, de poemar.
A conexão entre o pensamento e a fala de Aldir foi afetada pela lesão do estorvo de irrigação sangüínea. Impedido de transmitir o pensamento pela voz, ele danou-se a escrever pérolas rolantes de bem-humorada memória e apurado senso de observação. Como um Malba Tahan (1885 – 1974) sem números, saiu fazendo equações da existência em crônicas curtas e inspiradas microestórias. Temas da vida por dentro, difíceis de serem vistos a olho nu. A partícula estranha do silêncio que invadiu seu ser foi graciosamente circundada pela criatividade irisada do poeta. A exemplo das ostras, que produzem as pérolas misturando sucessivas camadas de cálcio, carbono e nácar, em um fascinante esforço de proteção, Aldir Brasil valeu-se de papel e caneta para enfeitar a concha da sua altivez.
Enquanto teve que ficar parado tomando soro, Aldir saiu para o recreio imaginário por dentro de si para tomar sorvete e chamou de “reencantamento do mundo” essa volta à infância pelas asas ocultas da doença. Deparou-se com um “minúsculo filósofo húngaro” quando havia sido decretada a leitura obrigatória dos contos de fada e este ousara escrever um ensaio sobre brinquedo, tendo que negar posteriormente tudo isso por força da inquisição da infância, ordenada pelas entrâncias tortas da falsa civilidade. Viu um pequeno Buda nu sorrindo para as crianças e descobriu que “o caminho da iluminação encontra-se nas formigas”. Sentiu-se impotente diante das grandezas em contradições: “Os meninos nigerianos que ouviram Mozart foram devorados por leões”.
O olhar inquieto de Aldir perscruta os desejos dos gatos verdes pendurados na parede. Se tivessem balões de histórias em quadrinhos sobre suas cabeças, poder-se-ia ler seus pensamentos tramando uma fuga da tela para pintar o sete nos telhados. Passeia pela casa de uma amiga, onde conheceu traduções do escritor russo Fiodor Dostoievski (1821 – 1881) feitas pela escritora mais que cearense Rachel de Queiroz (1910 – 2003) e escutou o nosso querido cronista Milton Dias (1919 – 1983) falando do poeta francês Paul Valéry (1871 – 1945) “enquanto o piano inundava os ouvidos”. Recorda que a casa não existe mais. “Venderam-na com todo mundo dentro”.
Os múltiplos de dez têm forte apelo em nossa percepção porque contar até dez é o que aprendemos primeiro, para depois sair compondo as propriedades da grandeza em abstrato. Acho que mesmo para os matemáticos esses ciclos simulados também são importantes quando a contagem é do tempo. Sendo assim, se for assim, a gestalt de Aldir Chaves Brasil Júnior, exprime a saudade do pai, de quem recebeu o nome completo, e chega em lembranças de luta de Box na televisão, quando tinha dez anos. “Em 74 vi Ali junto às cordas insultando Foreman, ironizando os duros golpes, cansando-o durante oito rounds até nocauteá-lo. Dia seguinte o pai foi ao Cura D´Ars e não mais voltou, nem Foreman”.
Muitas impressões da natureza humana foram fixadas nessas microestórias. “O Sr poderia mudar de lugar / sempre viajei de primeira classe / e acho horrível ser incomodada. / Deixei as cinzas do cigarro para acompanhá-la”. O texto joga a solidão da empáfia no borralho. Com ela, descem ao primeiro degrau do fundo do poço, a primeira classe, o primeiro mundo, o primeiro lugar e a primeira vez, em espirituosa decepção. “Por favor, acompanhe-me até a imigração. Senti por alguns segundos uma agradável sensação de bem-estar, enquanto esperava Oscar para voltarmos a Caracas”. Aldir toma emprestado um recurso do teatro para aliviar a desilusão em um episódio no qual a discriminação escapa por um fio.
Em “Vibrações sobre Branco Rosa” o autor descreve o ingênuo pudor da jovem que viu ficar corada ao se sentir amada. “A alvura da pele / nunca combinou / com o rubor das faces”. Chama de “Estelionato” a oferta de objeto com o intento de atração amorosa. “O grande amigo de Deus, Isaac, enviou brincos a Rebeca como primeiro sinal do seu amor”. Para ele, relações e comissões não passam de tentações no jogo do amor. “Lamento informar, mas três promissórias aguardam pelo senhor. Logo à esquerda, segunda porta. Lembrou-se de Vera e das crianças. Dirigiu-se ao local indicado, acompanhado por aquela fundamental perda de sentido”.
Desejos, transgressões, intimidades, usos e abusos eróticos e sexuais ponteiam a literatura de Aldir Brasil Júnior. “Dona Eleonor jurou que não tinha abusado de mim, apenas pediu-me para levantar suas anáguas e tocá-la que nem o finado”. A viagem da viúva, pela relva suave da vulva, recebeu o lacônico título “Deixa estar”. O tom picaresco de qualquer semelhança parecer mero propósito desvelado em algumas microestórias, remete às “Pequenas histórias de crueldade” (Secretaria de Cultura do Ceará, 1987), de Gilmar de Carvalho. Em “Terapia”, o autor chega a dar pistas aos paparazzi: “Depois de 16 anos de casados ele trocou-a por uma negrinha adolescente. A dor foi tão intensa que ela resolveu fazer terapia na Costa Barros”.
As tiradas de Aldir zanzam por toda parte, fazendo arte. Na microestória “Nacional Kid e o General de Ray-Ban”, ele funde e confunde ficção com realidade, vendo cenas de quadrinhos no xadrez. Andando pelas ruas de Fortaleza, traça um traço inusitado da rua Castro e Silva: “Ela nasce no cemitério, passa pela estação e morre na Catedral”. Sob o título “Marta”, mostra que às vezes é bom ter prudência e não viajar. “Ela sempre quis levar-me para Guaramiranga, tive medo, sua tristeza podia ser contagiosa”. Ao ler essas e outras passagens do presente que recebi do Aldir, pensei comigo: “Que bom que a literatura e a poesia não foram derrotadas pelo AVC”. Foi pensar isso e voltar a ler uma microestória intitulada “Quartos à beira-mar”, que diz assim: “Sem pedir licença o azul invadiu tudo”.