Tem um aspecto estranho esse título, eu reconheço. Ele pode ser lido igualmente da esquerda para a direita e também em direção contrária. Assim são as histórias do livro que acabo de ler. Escrito pelo músico e gestor cultural paulistano Edson Natale, “A Música no Brasil que você toca” (Paraquedas, 2023) tem como ponto de partida, não a roteirização construída pela indústria fonográfica, mas os personagens e as situações por onde a riqueza das expressões musicais brota em território brasileiro.

Os relatos têm o despojamento de se deixarem puxar pela ponta do fio da meada das lembranças, encontrada pelo autor nas relações, emoções e sentimentos circulantes da trama existencial definidora da urdidura de um cancioneiro sedimentado na pulsão concreta das paixões. É quase uma distração esse contar, uma conversa de alpendre, de calçada, de terreiro, um ato de presencialidade em que a gente escuta bem de perto os dizeres do contador.

Esse recurso da oralidade de roda e sua espontaneidade inteiriça vai acoplando naturalmente novidades de leitura a cada movimento das palavras que falam do pouco conhecido e do esquecido da nossa música, sem qualquer saudosismo. Natale transita com desenvoltura no vaivém dos acontecimentos e trata o teor de suas crônicas com a contemporaneidade que cada um carrega no tempo de agora. Nada passou, está tudo tão vivo que dá até medo pensar na dificuldade de respiração das histórias soterradas.

Por meio de uma citação do ajudante de pedreiro pernambucano Marconi de Souza Santos, que virou o músico Cannibal, o autor realça uma chave de filosofia livre: “Tudo começa quando você descobre que o mundo tem classificação”. E, seguindo a sabedoria desses ensinamentos, Edson Natale cruza nomes desconhecidos com conhecidos em suas contextualizações elásticas. Seu contar desloca-se entre pessoas, ativando traços de vidas, obras, trajetórias e a realidade desafiadora de ser artista em um mundo de materialismos.

Duas orações poéticas mencionadas pelo autor clareiam bem esse espírito: Uma, do ator e cantor catarinense Carlos Careqa em homenagem ao saxofonista e maestro carioca Pixinguinha, protetor dos músicos: “Proteja-nos das notas falsas, do dinheiro fácil e do sucesso a qualquer preço”. A outra, do dramaturgo e roteirista portenho Alberto Muñoz para o conterrâneo pianista e maestro Osvaldo Pugliese: “Proteja-nos de todos os que não nos ouvem”.

Mulher com violão em arte popular da galeria Mestre Noza na cidade de Juazeiro do Padre Cícero/Ceará. Foto: André Costa/Internet.

O alcance das resenhas de Edson Natale tangencia casos como o do padre e cientista gaúcho Roberto Landell de Moura, que inventou e fez transmissões de som sem fios no Brasil mais de duas décadas antes da transmissão radiofônica estadunidense considerada a primeira do mundo, mas não conseguiu apoio no país para registrar sua descoberta. Essa história nos leva a pensar em como seria a música brasileira se o rádio tivesse começado por aqui.

Como o autor aborda cada tema de modo bem pessoal, na posição de testemunho do que escutou e leu em suas andanças pelo país como músico e gerente de música do Itaú Cultural, o livro transparece essa descontração errante, o que o torna agradável de ler. Agrada também a atribuição de sentido humano e não mercadológico que Natale imprime ao interacionismo simbólico de seus escritos.

As fontes de memórias em um país musical como o Brasil são inesgotáveis. O autor bebeu em muitas delas e optou por valorizar, não a história da música, mas histórias de quem faz a música no território que cada pessoa toca. Fez isso com tanta discrição que deixou as histórias se contarem sozinhas, revolvendo o que pode ser perene no que cada circunstância tem de atemporal. “A Música no Brasil que você toca” não é um livro só para quem gosta de música, mas, antes de tudo, para quem gosta de boas histórias.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/10/02/musica-de-gente-de-musica.html