Narrativas do brincar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quintas-feiras, 02 e 09 de Setembro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Parte I, publicada em 02 de Setembro de 2010

Brincar é uma situação encantatória por meio da qual nos preparamos para tomar consciência da nossa humanidade e do mundo que nos cerca. Particularmente, trabalho com duas narrativas do brincar em seu ato concreto, que é a brincadeira: a narrativa do calor táctil e a narrativa que acontece pelo ouvido da mente. Uma, está associada aos jogos para os quais utilizamos os tradicionais cinco sentidos; a outra faz parte do conjunto de sensações resultantes da combinação de sentidos e da força reveladora das palavras. Ambas constituem-se, portanto, um direito humano, o direito à brincadeira do corpo, das palavras e do pensamento.

Tomei essas narrativas do brincar como base para a palestra que proferi sobre “A criança nos planos de desenvolvimento do Estado”, na última segunda-feira (30), no Plenário 13 de Maio da Assembleia Legislativa, a convite da Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Estado do Ceará – APDM.CE e do Unicef. Presidida pelo deputado Artur Bruno, a Sessão Solene, que tratou da certificação dos educadores sociais (brinquedistas), do programa “O Ceará cresce brincando”, me deu a oportunidade e a satisfação de compartilhar o que penso e o que proponho sobre esse tema tão instigante, necessário e urgente.

Na nova realidade mundial, agitada pelas transformações de significados decorrentes dos arranjos da multipolaridade, da virtualidade, da biotecnologia, da transgenia, da nanotecnologia e da sustentabilidade, o brincar e a brincadeira começam a aparecer, ainda que bastante incipientes, como indispensáveis na reconstrução do mundo. Por sua natureza espontânea e sua incomensurável liberdade de experimentação, brincar é uma das mais claras alternativas de busca de equilíbrio psicossocial diante do emaranhado de crenças e descrenças que rondam os tempos atuais, ainda marcados pela supremacia do economicismo, da vulnerabilidade do pensamento e da palavra, do uso da religião como suposto recurso de cidadania (o sagrado está ficando perto demais), da crise da política, da neutralização da infância readultizada e da escola (pública ou privada) como ponto de venda cativo do mercado de consumo.

O determinismo dos fatos é outro aspecto de entrave à evolução de uma mentalidade favorável à infância como elemento de mudança positiva. Sabemos que é uma dureza promover o desenvolvimento em um país colonizado e em um estado perversamente estigmatizado como pobre. Mas o Brasil e o Ceará não cabem mais no reducionismo desses estereótipos. Provamos nos últimos anos o sabor da impossibilidade, ao nos reposicionarmos com autonomia no diálogo interno e externo. Temos uma nova elite em formação, embora ainda confusa do seu papel; temos uma nova cultura se pronunciando, embora ainda em estágio conflituoso de afirmação; temos anseios por uma nova educação… e tudo isso requer novas formas de intervenção pública. Nesse contexto, pensar a criança é pensar no traçado de uma nova rota; é optar pelo brincar e pela brincadeira em sua dimensão estruturante.

Na quinta-feira passada (26) fui ver de perto um dos 14 espaços de referência do brincar, do programa “O Ceará cresce brincando”. A brinquedoteca da cidade de Cruz, a pouco menos de 300 quilômetros de Fortaleza, pelo litoral oeste, fica em uma agradável praça, com ladrilhos que têm forma de macaca (amarelinha) e jogo da velha, adornados pela plasticidade cosmológica das carnaúbas copérnicas, típicas da região. Vi crianças e adultos entrando e saindo nos espaços de contação e de jogos, como o vento e a luz que passavam pelos cobogós da simples e funcional arquitetura do pequeno prédio. As brinquedistas atentas e comprometidas me falaram de cultura e cidadania, ao mostrar a diversidade de opções de jogos e brincadeiras e ao contar do cotidiano do seu trabalho, extensivo aos distritos e à interação com os mais velhos.

Quando vejo essas coisas encho-me de esperança. Penso em quantos parabéns merecem os gestores públicos que são capazes de ver grandeza nas pequenas realizações. Construir um “Espaço de Referência do Brincar” não custa tanto. É uma questão de compreensão, de compromisso sincero com o sentido público da política. A infância precisa desse tipo de atenção e de espaço. As crianças já não suportam mais a pressão do agendamento das obrigações diárias, as tentações do consumismo, a pouca clarificação dos novos arranjos familiares, a desconstrução das referências de proteção espetacularizadas no noticiário de casais que se matam e pais que matam os filhos e o abandono ao mundo virtual dos games de violência e do cyberbulling ao sabor comercial das quatro telas (cinema, televisão, computador e celular).

O currículo escolar está cada vez mais impraticável. A grade de cinco disciplinas básicas (Português, Matemática, História, Geografia e Ciências) vem sendo inchada com o acréscimo de Filosofia, Sociologia, Artes, Música, Cultura Afro-brasileira, Cultura Indígena… sem contar com a introdução de temas obrigatórios, tais como os Direitos da Criança e do Adolescente, Direitos dos Idosos, Meio Ambiente, Consumo Consciente e Educação para o Trânsito. A criança fica desencorajada de ir à escola e a evasão aumenta. Por que ao invés disso, não se fazem interações didáticas, evitando o estresse escolar? As novas tecnologias estão aí para facilitar esse tipo de adequação. Sinceramente, não há mais do que a necessidade de uma nova disciplina, que poderia ser “Ética e Estética”, englobando filosofia, artes, música, cultura popular, culinária, religiosidade, modas e modos. Se em História não cabe cultura afro-brasileira, cultura Indígena e até sociologia é porque nossas fontes escolares precisam sair das deformações herdadas da história única.

Precisamos aliviar a escola, deixar de jogar para a responsabilidade escolar tudo o que a sociedade e o estado não conseguem resolver. Precisamos distinguir o que é eixo, do que é transversal e do que é satélite. Para completar, temos ainda ruídos pedagógicos como o “politicamente correto”, que ao camuflar o mal deixa de fazer um bem do ponto de vista educacional; a onda das “oficinas de reciclados”, que no anseio de reprocessar e reutilizar o lixo troca muitas vezes a exceção pela regra e deixa de reforçar a denúncia contundente ao desperdício; as publicações de preços baixos, sem qualidade de texto e ilustrações ruins, que abarrotam as feiras de livros e as calçadas das escolas em nome do acesso à leitura, e temos o paradidatismo, essa praga de produção de livros, apostilas, CDs e DVDs, nos quais a racionalidade burra do adulto acaba sufocando a sabedoria da imaginação.

Os efeitos colaterais decorrentes dessas situações repercutem diretamente na saúde, na vida social e no meio ambiente. Na saúde, afeta o campo psicológico (depressão, intolerância…) e o campo físico (distúrbios nutricionais e metabólicos…). Estudos do IBGE (2008 – 2009) revelam que um terço das crianças brasileiras, entre 5 e 9 anos, está acima do peso, e que muitas delas são obesas famintas, com diabetes adquirida. Na vida social, é notório o aumento da busca de satisfação, por meio do consumo de drogas, e o crescimento da violência, em casa, nas escolas, nos shoppings e nas ruas. Na relação com a natureza, é visível o desrespeito, a destruição e a desarborização crescente das cidades, vide o exemplo triste do que vem acontecendo com Fortaleza. (Continua na próxima quinta-feira, 09/09/2010).

Parte I, publicada em 09 de Setembro de 2010

Quanto custa para a saúde, para a assistência social e para o meio ambiente a nossa omissão com a infância? Quantas crianças poderiam ser um pouco mais felizes e se tornarem adultos mais conscientes, se tivessem a oportunidade de brincar, pelo menos em uma brinquedoteca de praça? Em quanto sangram os cofres públicos, por falta de cuidados que comecem na hora do crescimento pelo brincar? Quanto economizaríamos em clínicas, hospitais, reformatórios, presídios e apagamentos de incêndios florestais e psíquicos se parássemos de apostar na infelicidade individual e coletiva? Onde está o lugar do Estado em tudo isso? Quais as ações dos poderes públicos, em articulação com a sociedade civil, que poderiam viabilizar o espaço público do brincar?

Percebo duas vertentes prioritárias e factíveis nesse sentido. A primeira é a qualificação dos logradouros públicos (praças, ruas…). Esses lugares precisam inspirar mais segurança. Precisam contar com equipamentos fixos e móveis, necessários ao seu uso com o mínimo de decência. Quando falo em equipamentos fixos estou me referindo, por exemplo, as pistas de skate que estão sendo construídas nos nossos centros urbanos e as brinquedotecas do programa “O Ceará cresce brincando”. As pistas são espaços para a narrativa do calor táctil e os centros de referência do brincar (brinquedotecas, com acervo de livros e quadrinhos) englobam tanto as narrativas do calor táctil (brincadeiras do corpo) como as narrativas do ouvido da mente (brincadeira das palavras e do pensamento). 

Houve um tempo, há cerca de três décadas, que no Polo Cultural do Benfica, a Universidade Federal do Ceará mantinha um animado teatro móvel, do qual lembro agora, ao pensar no quanto seria maravilhoso se pudéssemos contar com uma pequena lona a circular pelas praças, integrando a cultura dos bairros, fazendo costuras estéticas de sociabilidade urbana. Os nossos logradouros poderiam ter mais atrativos como o pequeno parque de brinquedos feitos pelo DIM no jardim zoológico Sargento Prata, em Fortaleza. Personagens como o Capitão Rapadura, do MINO, deveriam estar espalhados pelas praças do Ceará, assim como a figura brincalhona do Saci Pererê poderia ser potencializada em festas transetárias e transclasses sociais, capazes de aproximar escolas, pais e comunidades. Com pequenas demonstrações de respeito ao espaço público do brincar e com praças (e por que não as futuras estações do metrô?) interligadas por ciclovias, cidades como Fortaleza certamente poderiam dar saltos de qualidade de bem-estar coletivo. 

A segunda vertente relativa à ação dos poderes públicos voltadas para a inclusão da criança em seus planos de desenvolvimento é a evolução permanente das competências dos brinquedistas, esses heróis silenciosos, que trabalham com a parte mais sensível e valiosa da sociedade, que é a infância. Para isso, o que precisa ser feito não é novidade: investir na melhoria dos modos de condução do brincar e da brincadeira, na gestão do alinhamento do tempo social com o tempo do brincar, na intensificação de vínculos sociais e territoriais, no vivenciar da experiência da criança em situação de brincadeira, em arte e literatura infantil e juvenil de qualidade, em métodos claros e bons, na valorização dos gestores da educação e da cultura comprometidos com o interesse público do brincar, enfim, no apoio efetivo e constante aos diversos educadores sociais dentro e fora da escola. 

Mas quais são mesmo os resultados da brincadeira como experiência? Para que serve mesmo tudo isso? Primeiro, porque brincar é essencial para a formação da subjetividade da consciência, portanto, um contraponto ao homogêneo e um fortalecedor da diversidade. Segundo, porque brincar é a melhor forma para o desenvolvimento da noção de tempo, espaço e capacidade de realização, assim como da vida social, da participação na escola e na construção do sentido de segurança. A criança que cresce na experiência da brincadeira passa a agir com mais segurança e com mais criatividade em tudo o que faz. O brincar e a brincadeira são premissas de civilidade que possibilitam o rompimento com a circularidade, consequentemente com a troca de estilos de faz-de-conta: sai do “não importa de onde vêm os recursos, nem para onde vai o lixo”, resultantes do faz-de-conta da racionalidade adulta, para entrar no sentido de sustentabilidade, do olhar o mundo com credulidade, próprios do faz-de-conta da cultura da infância. 

E por que isso acontece? Porque a experiência do brincar e da brincadeira se dá em um lugar onde, para acontecerem, as coisas não precisam dos nexos da realidade. Em sua experiência pelo mundo do nonsense, da imaginação e da fantasia, a criança tem muito sobre o que “pensar”; não o pensar lógico do adulto, mas o pensar que a faz tomar a distância necessária para configurar a sua interação com as medições do mundo, sem o rigor de pesos, volumes e comprimentos. No país das maravilhas, de Lewis Carroll, a personagem Alice cresce e encolhe a todo instante, de acordo com tudo o que não precisa estar de acordo com nada. No brincar e na brincadeira, a criança aprende a adquirir novas perspectivas sobre si e sobre o seu meio e aprende a controlar as emoções nas situações mais complexas. E o mais importante é que as referências ao imaginário não desaparecem quando se tornam reais. 

Por que as referências ao imaginário não desaparecem? Porque na brincadeira forma e matéria se confundem; cultura e natureza se mesclam em um processo transacional, um fluxo de troca de estímulos e respostas entre os mundos interior e exterior da criança, para que ela possa crescer na plenitude de suas faculdades humanas. Esse fluxo de dá pela liga da imaginação existente no lúdico, a zona do jogo presente em adultos e crianças; esse fluxo é alimentado pela curiosidade, a plataforma da criatividade que se constrói com mais solidez em que brinca; esse fluxo passa pela produção de hipóteses, o não-lugar de montagem do entendimento do mundo; esse fluxo acaba chegando ao raciocínio, onde se processa o significado lógico das coisas; com isso esse fluxo pode idealizar, fazer projeções e se preparar para inovar, interferir na realidade… 

Os governantes que realmente querem que o Brasil passe a ser um País respeitado e considerado interna e externamente, precisam urgentemente conceber um lugar de direito para a criança nos planos de desenvolvimento do Estado. Nesse sentido, mesmo separados em ministérios e secretarias a educação e a cultura precisam caminhar juntos. Os governos e a sociedade precisam pensar juntos como fazer planos e executá-los em favor do brincar e da brincadeira. Os adultos e as crianças precisam encontrar juntos os caminhos que levem a humanidade a um novo estilo de vida, que corrija o modelo equivocado que vem ameaçando os recursos naturais do planeta e desgastando as relações entre as pessoas. 

Para praticar o seu tempo, a qualquer tempo, a criança necessita ter direito à imaginação e a melhor maneira de exercer esse direito é por meio do brincar e da brincadeira. A nova criança, formada por uma combinação entre os currículos escolares e os currículos ocultos das mais variadas redes de informação e de relacionamentos, quer ter direito a procurar respostas mais convincentes para o que somos e o que queremos ser. E essas respostas estão no baú da questão política. Não há o que esperar, a vida adulta é conduzida pelas pegadas da infância e o Estado, pelos rastros da sociedade.