Natale e o sarau da simplicidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 21 de Fevereiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Toda vez que escuto uma música que escolhi escutar, não sei fazer outra coisa senão ouvir. Muito raramente sou convidado pelas canções a escrever com trilha sonora, como ocorre hoje com este artigo, inspirado nos pensamentos que me chegam por conta das composições do cd “Calvo, com sobrepeso” (Zé do Disco, 2008), do violonista, pesquisador e produtor cultural Edson Natale. Tudo começou com uns versos que dizem assim: “Se eu fosse uma coisa / gostaria de ser uma telha (…) Passar despercebida e ser indispensável” (A Telha).

Fui seguindo as pegadas das faixas cantadas, recitadas e instrumentais e observando a sonoridade e a poética das paisagens de simplicidade que esse trabalho oferece a quem está disposto a não trocar os encantos e conflitos naturais da vida pelo auto-engano das insatisfações travestidas de posses e aparências. O segredo do requinte da simplicidade nesse trabalho, patrocinado pela Petrobrás, está diretamente ligado à maturidade do autor, proporcionada por uma vasta experiência como artista e como gerente do núcleo de música do Instituto Itaú Cultural.

Acompanho o dinâmico e profundo trabalho de Natale, suas andanças, mapeamentos, produções de coletâneas e seminários, promovidos pelo programa Rumos, ação do Itaú Cultural voltada para o apoio à produção artística e intelectual da heterogeneidade inventiva brasileira. Como autor de guias e anuários, ele tem contribuído concretamente para a integração e difusão da produção cultural, e como músico/compositor, “Calvo, com sobrepeso” é o seu quinto registro fonográfico.

Senti-me em um sarau de música, poesia e filosofia de vida, ao ouvir o novo disco de Edson Natale. É bom esse encontro com um autor que tem uma existência a lhe dar coragem e desprendimento para se impor, diante da aflição aquisitiva do sedutor mundo das drogas, dos cartões de crédito, dos celulares mágicos e de tudo o mais que simboliza a escravidão do consumismo. As composições de Natale cantam uma vida exterior menos inspirada na aparência porque ele cultiva interiormente a consciência do “ser # é =”, escrita na capa, como a equação do seu estilo de vida.

O cd de Natale não nasceu sonhando em ter lugar nas prateleiras de produtos prioritariamente comerciais, nem foi educado para a competitiva disputa por uma citação nas capciosas listas de mais vendidos. Ele não existe para suprir indiferenças causadas pela larga escala da música homogênea. Quem diz isso é a toada “Não me incommodity”, feita em parceria com o engenhoso Maurício Pereira: “Imaginar uma coisa com peso de pluma / num canto perdido dum trem de minério”.

O que não está achado, pode até estar perdido, mas existe. Talvez esteja na hora de sermos menos civilizados e mais selvagens, no sentido ambiental do termo, para podermos modelar um cotidiano coerente com as lições de sustentabilidade da natureza. A desmaterialização da economia, que vem surgindo como uma tendência de superação da crise planetária, pretende trocar a multiplicação do supérfluo e o imediatismo pelo consumo dos recursos renováveis e dos produtos intangíveis, desperdiçando menos, gerando menos lixo e preservando a vida e o viver.

O desapego aos exageros impostos pelos parâmetros mercadológicos de sucesso faz de “Calvo, com sobrepeso” uma obra vinculada aos valores de uma nova orientação de convivência social. Dentre esses valores situam-se os que nos levam a procurar compreender a medida do tempo com base na satisfação do que estamos fazendo a todo instante e não em determinações cronológicas, a prescreverem implantes capilares e malhação exagerada. A chave dessa janela para a vida simples está na sensação de lentidão do tempo, quando fazemos algo enfadonho; e de rapidez das horas, quando praticamos algo que nos dá satisfação e prazer.

Tenho tido muita cautela diante das pressões do efêmero. Se hoje eu fosse esculpir uma frase para a minha lápide, gravaria assim: “A vida é lenta”. Essa é a síntese de tudo o que aprendi até agora. De dentro para fora, da interioridade humana ao mundo onde a operacionalização da vida se dá, tudo o que é basilar e duradouro se desenvolve calmamente e com o resguardo do ócio reparador. É só clarear o que se busca da vida para entender que uma coisa é a simplificação e outra é a redução de grandeza.

A redução do senso de complexidade para o empobrecimento cultural vigente na sociedade do simulacro levou o cineasta David Lynch (Cidade dos Sonhos, Twin Peaks, Homem Elefante), a postar no YouTube um curioso desabafo com relação a mais nova das novíssimas e novidadeiras novidades, que é o iPhone, da Apple, no qual é possível até ver filmes: “Se você assiste a um filme num telefone, nem em um trilhão de anos irá desfrutá-lo a contento. É muito triste ver alguém acreditar que se possa ver um filme na bosta de um telefone”, dispara.

Muitas pessoas vêm caindo fora dessa falsa evolução. Estão se dando conta de que não comprar além do que necessitam e não depender da exterioridade enganosa é bom para viver melhor. Os defensores da vida simples costumam advertir que viver com simplicidade não é andar mal-amanhado, nem fazer voto de pobreza. Pelo contrário, viver com simplicidade é usufruir o conforto da maneira natural de ser, livre da pressão dos vícios programados pelo consumismo. Viver com simplicidade é viver bem, com o que é realmente importante para cada um e para a coletividade.

A música de Natale reflete o entendimento das movimentações que primam pela máxima de que o suficiente é o suficiente. Tenha o nome que tiver, esteja no estágio em que tiver, já são consideráveis as ações de simplicidade voluntária, “slow-foods”, o decréscimo francês (“décroissance”), o dia londrino de não comprar nada, o “lay-off” (um dia útil da semana sem trabalhar) e a volta ao escambo entre pessoas e comunidades; a permuta entre empresas e a troca de suprimento entre países, como está sendo negociado o câmbio de petróleo venezuelano por grãos argentinos.

Tenho praticado uma agradável experiência de, vez por outra, passar uma semana “fazendo nada com os amigos” em algum lugar afastado da lida diária. Normalmente convidamos amigos que tenham crianças para que os nossos filhos também participem desse exercício de desaceleração e convivência desinteressada. Aquela coisa de olhar para os vaga-lumes, não esperando que eles clareiem caminhos, apenas para vê-los brilhando, alegrando a noite, riscando o escuro de luz saltitante.

A convivência “fazendo nada” nos leva a fazer coisas incríveis, esquecidas em nossas pressas e compromissos. O fato de não vermos as coisas no escuro não quer dizer que elas não estejam lá. A neurociência explica que se tivermos tido a oportunidade de olhar os objetos que nos cercam, o cérebro mantém a representação mental de todos eles em seus lugares, mesmo na ausência de luz. Aprender a se mexer no escuro dos padrões estabelecidos pelas ilusões do consumismo é um jeito de ralentar o tempo e descobrir muito do que nos faz feliz.

Acompanhado pelo piano de Daniel Szafran, Natale argumenta que “Do que não fui / Hoje sou a sombra / Só me resta acordar a raça” (Agora e na hora de nossa morte). O segredo é antigo, o desvendar é sempre novo. Está na alegoria do arco e da pedra que vem das viagens de Marco Pólo ao mundo das maravilhas: a ponte não é construída por uma ou outra pedra, mas pela curva do arco; ao mesmo tempo em que não existe arco sem a existência das pedras. Fico pensando nisso, enquanto toca “Cheiro de suco”, com baixo de Paulo Brandão, percussão de Simone Soul, trombone de Tiquinho, violino de Alex Braga e violão de Edson Natale…