Nem tudo está tão dominado
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 20 de Dezembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Depois de 21 anos de ocupação do espaço da manhã na grade de programação da TV Globo, a apresentadora Xuxa finalmente recebeu aviso da emissora para largar o horário. A queda de audiência da auto intitulada “rainha dos baixinhos” não recomenda mais sua continuidade como atração de marketing televisivo para a infância. Xuxa até que estrebuchou e chegou a apelar para gravações de gincanas culturais e para competições associadas ao corpo e à resistência física.

Apesar do esforço ela não conseguiu vender uma identificação com as novas atrações que supostamente valorizariam a cultura brasileira e, para a parte que procurou imitar o sucesso da série islandesa Lazy Town, cujo conteúdo está centrado no combate ao consumismo e ao sedentarismo infantis, convidou um ex-integrante do Big Brother Brasil. Não deu certo, nem poderia dar. Mesmo com toda a adultização da criança como consumidora, impostas pela pedofilia de mercado, ainda existem alguns limites para o simulacro.

Os maus-tratos da violência simbólica para com a infância continuam predominando em um mundo entulhado de brinquedos que dispensam a imaginação e de produtos culturais que já entregam tudo pré-digerido para o deleite das mentes preguiçosas que ajudam a engordar. A situação é tão grave que a rede de TV CBS criou um Big Brother com 40 crianças, de 8 a 15 anos e até mesmo nos Estados Unidos esboçou-se uma reação contrária. O programa, intitulado Kid Nation, confina a meninada por 40 dias, 24 horas por dia cercada de câmeras por todos os lados, transmitindo suas intimidades aos telespectadores adeptos do voyeurismo.

O fundamentalismo tecnológico, que deifica as novidades digitais, tem martirizado muitas crianças com o que já se convencionou chamar de tecnoestresse, que é o efeito das agressões psíquicas, provocadas pela perturbação do uso intensivo de tecnologia, sem a existência de um rumo, de um foco, de um sentido para a ação. As crianças tecnoestressadas perdem cada vez mais a paciência, pois tanto não toleram a vida que não se transforma com um simples clique, como se esgotam em intermináveis buscas que não sabem de quê.

As escolas teoricamente superaram o estigma do “a-luno” (aquele que não tem luz) e do “in-fantil” (aquele que não tem o que falar), mas ainda existem muitas delas que espancam a inocência passando lição de casa para crianças de quatro anos e fazendo prova para outras com menos de sete anos. Enquanto isso, a transnacional japonesa Sony vem testando em creches como se dá a relação afetiva das crianças com robôs humanóides que podem vir a substituir babás e animais de estimação.

A convergência entre a indústria do cinema e a de jogos eletrônicos também é um mercado bilionário em expansão, nutrido pela promoção da cultura da destruição na mente das crianças. Os ataques à infância ocorrem de tudo quanto é lado. Em muitas lojas “os pequenos mais cheios de atitude” combinam fraldas e chupetas com camisetas que estampam imagens e frases do passado roqueiro dos pais. Nessa mesma linha, as meninas “bem-informadas” e de “mentes espertas”, contam com tranqueirinhas em estilo erotismo precoce, roupas, sapatos e maquiagem de perua mirim.

Tão sério quanto a exposição da intimidade da meninada no Big Brother estadunidense foi a recente descoberta de drogas em partes de brinquedos que podem ser ingeridas por crianças. O Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial) determinou a retirada do mercado brasileiro do aparentemente inofensivo brinquedo Aqua Dots, cujas “bolinhas mágicas” se juntam na água criando coloridas figuras tridimensionais. Acontece que se a criança ingerir tais bolinhas fica eufórica e tem alucinações, pois, metabolizadas, elas provocam efeito semelhante a uma droga conhecida com “ecstasy líquido”.

No sentido contrário ao da ideologia do consumismo, a sociedade vem esboçando uma série de ações que contribuem para a valorização do parâmetro humano. Não é à-toa que as bibliotecas comunitárias se expandem por todo o País, a maioria delas constituídas por doações de livros usados. Não importa, a sabedoria popular diz que livro novo é o que ainda não foi lido. O essencial nesse fato é a revelação de que as pessoas querem algo mais do que as “facilidades” tecnológicas; querem algo que lhes proporcione mexer com a consciência e com a imaginação, de forma a ativar o sistema de respostas que nos dá as condições de descobertas e de interpretação do mundo à nossa volta.

Os baixos índices de leitura no Brasil passaram a atrair editoras estrangeiras por representarem um potencial de crescimento de vendas. Havendo oportunidade de acesso ao livro, as pessoas estão dispostas a aproveitá-la. A aprova disso é a Jornada Literária de Passo Fundo, idealizada e conduzida pela professora Tânia Rösing, que está na 12ª edição (desde 1981), com debates, lançamentos, conferências, premiações, homenagens e manifestações artísticas. Desde 2001 o evento conta com uma vertente infantil que é a Jornadinha. De tanto formar leitores e discutir literatura, o evento é formalmente considerado Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul.

O contramovimento de valorização do livro e da leitura não caminha sozinho. Aumenta também, embora comedido, o número de lojas com espaço para brinquedos de madeira, fantoches e jogos infantis que não vêm com a brincadeira pronta. Revistas como a Ciência Hoje, editada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, conseguem manter uma certa periodicidade, mesmo teimando em veicular um rico, variado e atraente conteúdo.

A televisão também vai aos poucos se mexendo para atender a essa demanda de programas de qualidade exigida por parte cada vez mais significativa da população. A TV Cultura e o Canal Discovery Kids continuam sendo os campeões de programas decentes para crianças. Programas como o Cocoricó, que conta a vida de um menino de seis anos que não usa celular nem videogames e mora em uma fazenda, onde é amigo das galinhas; e a série islandesa Lazy Town, à qual já me referi ao comentar a tentativa de decalque feita pela Xuxa, crescem aos olhos infantis e despontam como tentativas de reversão, embora com alguns deslizes de posturas exageradamente corretas.

Um bom indicador de interesses que correm por fora da raia da ideologia do consumismo é o sucesso do Festival Internacional de Cinema Infantil, realizado em São Paulo e no Rio de Janeiro pelas diretoras Carla Camurati e Carla Esmeraldo. Já na quinta edição, esse festival exibe de produções nórdicas a brasileiras, passando pelos clássicos Disney e Pixar. No cinema convencional, nota-se que ao lado dos filmes infantis de animação, que equilibram os cofres de Hollywood, tipo Toy Story, Shrek e Ratatouille, nos quais os personagens são modelados para agir como humanos, está crescendo a curiosidade por filmes mais artesanais, tais como Kiriku, do cineasta franco-argelino Michel Ocelot, que abrem possibilidades estéticas que estimulam à imaginação.

A consolidação do Cirque Du Soleil, companhia canadense que reconfigurou o conceito de circo, é também uma prova de que há alternativas possíveis à banalização da arte e da vida. Com um elenco de mais de cinqüenta artistas de diversos países, o Cirque Du Soleil aboliu os animais da cruel vida circense e passou a misturar teatro e acrobacias com cenário imaginário capaz de elevar as pessoas ao nível dos elementais. Convém lembrar que esse conjunto de efeitos estéticos já era praticado em Fortaleza nos anos 1980 pela bailarina e coreógrafa Dora Andrade, na escola de dança que levava o seu nome e que serviu de base para a criação, em 1991, da Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes, Edisca, onde ela continua desenvolvendo espetáculos artísticos que dignificam a pessoa humana.