Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 17 de Julho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

O que inicialmente parecia ser apenas um belo dia de sol, com crianças brincando em uma paisagem bucólica, tomou proporções nunca antes observadas por mim. O amarelo estourava os contornos da tela e o colorido das flores, das roupas, dos cabelos das pessoas, do fundo de céu, causavam uma animação incomum, uma vivacidade que me fez parar para ver o que nunca imaginara enxergar. O que estava diante de mim não era apenas uma tela de uma artista plástica querida; o que aparecia diante dos meus olhos era uma passagem, um túnel secreto para algum lugar, para algum tempo agradavelmente desconhecido para mim.

Fiquei curioso e com vontade de sentir mais o que aquele quadro da Nice queria me dizer, me mostrar. Era um presente que ela tinha me dado há muitos anos, uma lembrança de amiga, daquelas que enchem de boniteza a nossa casa. As figuras das meninas e dos meninos, antes paradas na tela, começaram a se mexer, como muitas crianças fazem quando estão diante das câmeras. Por uma abertura que sobrou na parte inferior da tela notei que havia uma passagem entre uma criança e um canteiro de flores e que nela havia profundidade de campo, o que não é normal nas artes plásticas naïf.

Chamo o trabalho da Nice de naïf porque na gramática das artes plásticas esse é o termo que classifica o tipo de obra que ela produz. O termo vem do francês e se refere à arte ingênua, de composição primitiva, normalmente cheia de detalhes e cores quentes. Nesse universo é comum encontrar artistas se expressando nas zonas referenciais do cotidiano popular; da interpretação alegórica dos acontecimentos contemporâneos e das manifestações mais vinculadas a inquietações políticas e sociais. A pintura de Nice se distancia desses ambientes por seguir apenas o parâmetro humano, muitas vezes escondido por trás das caracterizações.

Enquanto pensava isso, me dei conta de que todos os olhos de infância pintados na tela olhavam firmes para mim e isso me enchia de novas indagações. Eles poderiam estar tentando inibir a minha vontade de entrar, mas também poderiam estar me fazendo um convite, com a mudez daquela fitada perseverante. Resolvi atravessar a imagem. Só assim poderia descobrir a razão das crianças presentes na criação visual da Nice aparentarem rejeitar e querer a minha intromissão entre as plantas cultivadas por ela em pinceladas de tantas cores: o coração da Nice é uma flor; e, como uma flor, pulsa em fascínio, pureza, alegria e requinte bruto.

Com um coração de flor, Nice Firmeza, que aniversaria amanhã, só poderia mesmo era ser a pessoa fabulosa que é e fazer a arte encantadora que faz. Solta ao afago dos ventos e à claridade da luz do sol, combina a experiência da observação pessoal com a vivência no mundo artístico e o trabalho de pintura que realiza com crianças e amigas de bordado. São muitos motivos que definem os temas abordados no seu pintar. Do mesmo modo que há diversas formas de apreciar um quadro, há indistintas maneiras de pintá-lo, de definir as imagens a serem fixadas na tela.

O que se passa ao redor de Nice não lhe impõe temas; pode até influir na sua inquietação de pintar. Lembro que quando ela estava se preparando para fazer cirurgia de catarata, ela passou a pintar obsessivamente. A hipótese de que poderia ficar com a visão comprometida fez com que Nice reagisse pintando incansável e incessantemente. Naquele momento, o coração floral de Nice explicitou sua ansiedade em lembranças de brincadeiras e flores, imagens por meio das quais semeia de luz e cores o mundo que a rodeia.

Não são, portanto, as circunstâncias do mundo externo, as formas como se passam os acontecimentos do cotidiano que determinam sua arte. Nice fala de si mesma, de suas vivências interiores, nas recorrências do ser em seu discurso pictórico. De dentro do jardim de Nice, pude observar que seus olhos vêem mais do que ela gosta de dizer, de contar, de oferecer ao outro; como faz com as flores cheirosas que cultiva também para dar de presente a quem a visita, a quem leva amor e arte ao sítio-museu que ela construiu lado a lado com o seu mais que amado Estrigas.

A obra de Nice não trata de sonhos, não é ficção; é tudo o que já foi sonhado por ela, se mexendo em sua realidade. Mesmo cada quadro tendo a sua própria história, como o que tive a satisfação de percorrer mais intensamente por dentro, a liberdade dos sentimentos é o que define a trama dos personagens pintados e suas relações com a natureza. A pintura de Nice não é, assim, uma função derivada do seu fazer artístico, mas um meio a que ela recorre para elevar suas sempre agradáveis conversas a dimensões mais sofisticadas do ser.

A linguagem naïf é a oralidade no mundo da pintura. Nice gosta de falar; está sempre contando uma novidade de qualquer época. Ela se deleita em arte com sotaque próprio, dispensando adjetivos de perspectivas, para apenas brotar, como brotam as flores do Mondubim. Sua vida e sua obra são notas plásticas, crônicas verbais e visuais de contentamentos e de desabafos floridos. O que não a inspira pintar nem dá tempo de contar, ela escreve; sejam receitas de suas invencionices culinárias ou cantigas populares tantas vezes cantaroladas em sua infância de menina do interior. Tudo para ela tem uma história.

Os quadros de Nice Firmeza têm as cores fortes da sua palavra e a intensidade da luz que armazenou nas suas brincadeiras pelas dunas da velha praia de Canoa Quebrada, na meninice de Aracati, onde nasceu. Tempos atrás fizemos um passeio a pé por Canoa e de barco pela foz do rio Jaguaribe. Fomos na casa da Dona Maricota, sua amiga de infância, que morava pertinho da capela, em uma casa deitada no colo envolvente de uma imensa duna andante. O sol forte, o céu azul e as crianças que naquela ocasião vi brincando na areia avermelhada das falésias, eu já conhecia das suas telas ardentes e bidimensionais. 

À época, não atentei bem para isso. Amei o que estava fazendo, o nosso passear, a fortuna daqueles instantes fecundos. Só depois, quando entrei no quadro que apelidei de “A janela para dentro” foi que descobri na arte da Nice os recortes que pulsam dessas encantadoras paisagens em sua simplicidade e iluminação. Nice carrega em si essa luz, essas cores, essa movimentação, essa realidade. Pinta a sabedoria do seu coração de flor, por isso transforma até angústias e medos em quadros iluminados, deixando sempre vazar em frestas o calor sereno da sua pessoa.