Um dos papeis da arte pública nesses tempos de desarranjos humanos é promover choques estéticos que possam despertar olhares desatentos à necessidade que a vida tem de passar pela imaginação para se aproximar da realidade objetiva. Nos dias em que estive em Praga, vi esse efeito nos cruzamentos de modos de sentir o mundo provocados pela obra de David Černý, artista visual contemporâneo tcheco.

Com esculturas e instalações em grande escala, encontradas inesperadamente em diversos locais da cidade, Černý contribui para tornar mais aberta e cosmopolita aquela urbanidade de mais de mil anos. Ele mexe com situações petrificadas e efêmeras ao colocar nas ruas um trabalho movido por críticas ao que promove o mal-estar social e por sátiras ao poder que oprime. Em 1991 foi preso por pintar de rosa um tanque soviético em um memorial de guerra.

A primeira obra de David Černý que me chamou a atenção em Praga foi a Miminka (que em tcheco quer dizer Bebês). Encontrei três desses recém-nascidos gigantes (2,5m x 3,3m), feitos em bronze, com códigos de barras nos rostos, engatinhando em um recanto de natureza, o Kampa Park. Era a representação da infância como produto a me impactar. De longe, vi que dez deles escalavam a torre de telecomunicações da cidade, como se fossem formiguinhas.

Miminka, os bebês gigantes de David Černý engatinham por Praga com códigos de barras nos rostos. (Foto: Flávio Paiva)

No pátio do Museu Franz Kafka (1883 – 1924), encontrei a escultura cinética de dois ditadores, em bronze de dois metros, urinando dentro de um pequeno tanque no formato do mapa da República Tcheca. Seus pênis se movem e esguicham água, criando pequenas ondas como se estivessem brincando de fazer piss (xixi em tcheco) sobre o país. Longe dali, em uma praça de comércio, a cabeça do escritor, em aço fatiado em mais de quarenta placas e com dez metros de altura, faz movimentos giratórios de confusão mental.

Tais como essas, as obras de Černý adicionam emoções, a uma cidade historicamente intensa, em nichos estéticos perturbadores. Quem anda pelas ruas de Praga pode ser surpreendido por um indivíduo pendurado só com uma mão em um mastro no alto de um prédio, mas com cara de despreocupado, o que seria uma crítica aos cientistas e intelectuais que andam fazendo vista grossa para o que está acontecendo no mundo.

Em sua manifesta vontade de superar posturas dogmáticas e de chamar as pessoas para novos sentidos sociais, o artista provoca pessoas e instituições apegadas ao passado levando a público obras desconcertantes, como a escultura anti-heroica de Venceslau I (907 – 935), o duque da Boêmia, que virou santo e se tornou o padroeiro do que viria a ser a República Tcheca, em que o venerado personagem histórico está montado na barriga do seu cavalo morto, de pernas para o ar e com a língua para fora.

A linguagem de intervenção utilizada por David Černý em suas esculturas e instalações revela um forte caráter conflituoso nas suas relações políticas. Tanto que ele construiu um cotoco de dez metros para flutuar no rio Vltava (Moldava) apontado para o Castelo de Praga, a residência oficial do país. Nesse mesmo eco de rusga com o poder, ele montou uma instalação satírica com um vídeo em que o ex-presidente da república (de 2003 a 2013) Václav Klaus recebe um artista aliado. No áudio, a música “We are the Champions” (Queen): “Os perdedores não têm vez / Pois nós somos os campeões do mundo / E continuaremos até o fim”. Até aí, tudo normal, porém, para ver essa gravação, as pessoas precisam subir em uma escada e meter a cabeça no furo que fica bem no meio das nádegas da escultura de corpo humano curvado. É isso, as transformações pedem sacudidas estéticas.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/07/31/nichos-esteticos-de-david-ern.html