No cinema com Lula e Mandela
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 11 de Fevereiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Os cartazes nos cinemas anunciam dois filmes que abordam aspectos da vida das duas personalidades mais importantes das últimas décadas: Nelson Mandela, o líder sul-africano que no final do século XX colocou seu país, a África do Sul, no mapa das nações com futuro, e Luis Inácio Lula da Silva, o líder brasileiro que neste início de século XXI coloca seu país, o Brasil, no mesmo mapa. A África do Sul, a maior economia do continente africano, e o Brasil, a maior economia do continente latino-americano, fazem parte atualmente do grupo dos 20 países (G20) mais influentes do mundo.

Embora os filmes “Invictus”, de Clint Eastwood, sentimentalmente hollywoodiano, e “Lula, o filho do Brasil”, de Fábio Barreto, onde predomina o realismo biográfico, sejam bastante diferentes em suas características cinematográficas e tão pouco comparáveis entre si quanto à África do Sul e o Brasil, eles nos impulsionam a sair das salas de cinema pensando no que Mandela e Lula têm em comum e no que os diferencia enquanto expressões transformadoras da narrativa conflitante de dois países que, cada qual a seu jeito, conseguiram entrar em estágio de fuga do domínio colonial.

Para quem ainda não assistiu, adianto que “Invictus” fala de como o presidente Mandela utilizou o rúgbi, um esporte até então associado aos brancos, como instrumento para a conciliação étnica, em um país de maioria negra apaixonada por futebol, esporte também de origem inglesa. Já “Lula, o filho do Brasil”, conta do processo de formação política do presidente brasileiro, ambientado na fronteira da sobrevivência, a partir da força da capacidade de resiliência e da integridade moral da sua mãe Lindu.

Mandela e Lula são líderes com muitas grandezas. A maior de Mandela foi a de desenvolver a compreensão de que era indispensável superar o ódio do inimigo para contar com ele na construção do País e a maior de Lula foi o rompimento da estrutura mental de colonizado que sempre dominou as elites brasileiras. Mandela tem a grandeza de Lula, mas Lula ainda não atingiu plenamente a maturidade de Mandela. Eles têm 27 anos de diferença de idade, um é de 1918 e o outro de 1945. Curiosamente, 27 é também o número de anos que Mandela passou preso, tempo em que observou até a poesia dos seus algozes.

Hoje, dia 11/02/2010, está fazendo 20 anos que Mandela saiu da prisão. A África do Sul se prepara para sediar a Copa do Mundo de Futebol, sonho coletivo que dificilmente teria se tornado realidade se a intolerância étnica não tivesse sido contornada por atitudes políticas firmes, como a que inspirou o país a vencer a Copa do Mundo de Rúgbi, em 1995, por insistência do então presidente Nelson Mandela. A África do Sul e o Brasil são países que desenvolveram paixão pelo futebol. Entretanto, não é só o esporte e um passado rebelde que aproximam as almas invencíveis de Mandela e Lula.

Pelo tempo que passaram na presidência de seus países, Mandela, de 1994 a 1999, e Lula, de 2003 a 2010, demonstraram ampla capacidade de enxergar a complexidade e uma sofisticada habilidade de se mexer dentro dela, sem se deixar abater pela tensão entre seus ideais e a modelação, aparentemente contraditória, que tiveram que promover diante das circunstâncias. Por serem catalisadores, mediadores, articuladores sociais e políticos, jogaram na área de convergência das polaridades, desafiando verdades prontas e potencializando as mudanças existentes nas coisas comuns.

Mandela e Lula têm raciocínio de inversão e, assim, foram capazes de transformar receios em atitudes aglutinadoras, porque aprenderam a olhar o mundo como quem vê beleza, grandeza e solidariedade. Nem um nem outro precisou se esconder atrás de teorias ou dogmas, porque não recearam o patrulhamento do senso estabelecido nem se deixaram imobilizar pelos estereótipos. Em um trecho do filme “Invictus”, quando um dos auxiliares de Mandela recomenda que ele abandone a ideia de apostar na seleção de rúgbi, alegando que na opinião dos especialistas o time não teria a menor condição de ganhar a Copa, Mandela vira para ele e diz algo como: “pela previsão dos especialistas nós dois ainda estaríamos presos”.

A grande mudança que Mandela e Lula produziram na África do Sul e no Brasil deve-se em grande parte à visão intuitiva e à forma abstrata com que eles trataram o pragmatismo da gestão política e as relações internacionais, desnorteando os arranjos estabelecidos. Eles usaram os dois lados do cérebro para observar, questionar, experimentar o inesperado e articular contrários. Aprenderam a ler o mundo conversando com pessoas de todo tipo, nas mais variadas condições sociais, econômicas, políticas e culturais, não deixando que ninguém fosse invisível ao seu redor. Utilizaram-se do carisma que lhes é peculiar para construir uma história que eles mesmos acreditaram. Falam com cultura (linguagem da vida), com coração (linguagem dos sentimentos) e estão perto de quem os escuta (linguagem do afeto).

Ao assumirem o poder executivo de seus países, Mandela e Lula tiveram que lidar com os excessos de muitos de seus companheiros de luta: na África do Sul, o ódio quase incontrolável aos brancos e, no Brasil, a vontade quase incontrolável de se dar bem o mais rapidamente possível. Para frear esses hábitos tiveram que ser resolutos ante o pensamento pequeno e vingativo, próprio das sociedades de curto prazo. Neste aspecto, o líder sul-africano conseguiu ser mais enfático e mostrar que com ressentimentos não se constrói uma nação.

No filme “Invictus”, Mandela diz que seu país “precisa de grandeza”. E age diretamente na dissipação de qualquer movimento direcionado ao retorno do separatismo oficial. Essa questão não apresenta uma situação comparativa em “O filho do Brasil”, porque o filme de Barreto termina com a eleição de Lula. Mas convém lembrar que o presidente brasileiro deixou a importação de ideias separatistas serem introduzidas no País, e o que era preconceito resultante da economia escravista passou a ganhar matizes de separatismo oficial. Lula, assim como Mandela, despertou para a importância da conciliação como tática de redução das desigualdades, mas o líder sul-africano foi determinado no enfrentamento dos equívocos populares manifestados em decisões com informações e perspectivas insuficientes.

Nelson Mandela herdou um país apartado formalmente e conseguiu iniciar uma possibilidade de convergência. Lula herdou um país bem amalgamado, a um custo sociocultural incalculável, e permitiu que nele se iniciasse um processo de apartação étnica. A África do Sul estava no passado mais primitivo de apartheid e Mandela conseguiu direcioná-la ao futuro. O Brasil, ao contrário, estava no futuro mais sofisticado da miscigenação e Lula deixou fluir um retrocesso que poderá descambar para um indesejável apartheid nas décadas que virão.

A compreensão de Lula com relação à apartação chega próxima a de Mandela apenas quando se refere às questões latino-americanas. É comum ouvi-lo dizer que ao conversar com os presidentes vizinhos, costuma pedir que evitem a exaltação das divergências do passado e foquem no que temos de convergente para o futuro. Porém, com relação ao Brasil ele não age assim. E o pior é que, pelo visto, Lula, que levantou os olhos para o “senhor ” e disse que o Brasil não mais aceitaria ser tratado como subalterno, alterando a nossa relação com velhos e novos globalizadores, ainda é quem tem mais autoridade para contrariar esse processo.