As crianças normalmente pedem que lhes contemos uma mesma história repetidas vezes. Fazem isso para poderem seguir livremente os detalhes de seus interesses no momento de cada leitura. Essa situação acontece de forma invertida com o protagonista dos mais recentes livros do psicólogo Cavalcante Júnior, quando a criança sobrevivente no corpo e na mente do adulto que se tornou procura narrar repetidas vezes a mesma história de abuso sexual que sofreu por muitos anos.

Em “Taís Dorá” (Armazém da Cultura, 2020) essa externalização transita pelos capítulos do inferno, purgatório, paraíso e regresso, atestando o fato oculto no sobrenome “Dor há”; em “Amargoso” (Radiadora, 2022), reconhece implicitamente no título a ambivalência do gozo amargo sofrido e o descarta; até repaginá-lo em “Amarás” (CRV, 2023), o lugar do amor, onde consegue escapar do ressentimento de não ter tido a oportunidade de ser quem poderia ter sido, diante do desamparo na gênese de sua individuação.

O autor sabe que, de todos os traumas humanos, o abuso sexual infantil é o menos suportável, o mais irrecuperável. O corpo e a mente jamais se livram dessa memória dolorosa e trágica. Daí rumina poeticamente o mesmo texto nessa perspectiva, conduzindo os anos de aflição do menino de vida arruinada por maus-tratos do namorado, isolamento, relatos contidos, tentativa de envelhecer no lugar onde tudo começou e o reencontro de si na organicidade de uma biblioteca comunitária.

Tomado pela estética da migração pelo vazio, o garoto vai se reinventando enquanto reconstrói as bordas da própria sina em identificações afetivas que alcançam a desnecessidade de viver como se fosse outro. A ruptura da credulidade pelo prazer seviciado traz várias histórias em uma. Isso talvez explique a vontade de contar muitas vezes. Socioemocionalmente falando, mesmo ficcionado, esse remoer dos fatos é uma forma de retomada do controle da subjetividade estilhaçada com o estupro.

Melancolia (1892), do pintor expressionista norueguês Edvard Munch (1863 – 1944). Reprodução/National Gallery Munch (Oslo).

A repetição avança no contrafluxo da dor, dando tempo ao protagonista para processar o alívio possível por meio de nuances que vão sendo percebidas e apreendidas, transformando-se em consciência à medida que ele volta a decorar, como história, aquilo que, como sentimento, vai ficando para trás. A sensação de estar sendo escutado e de que tem alguém próximo remete o trauma a uma narrativa própria do destino pulsional, e não como formulação de defesa.

“Amarás” é o conto síntese de uma novela em construção; uma ficção inspirada em personagens reais que, como os peregrinos de Canterbury na obra do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975), procura tornar a caminhada mais leve por meio de contos proibidos. Ao escrever e reformatar as palavras que levam ao sentido de busca do protagonista, em seu esforço de ir botando a dor para fora, Cavalcante Júnior aborda questões merecedoras de recortes distintos.

Uma dessas questões, espalhada por toda a obra, é a destacada importância dada à literatura e à arte na identificação da dor e do processo de cicatrização. A dialética do apreciar e ser apreciado está presente em toda a trilogia do contar de novo, deslocando o inaceitável para o fundo do palco e deixando a boca de cena para o exercício do conflito de inversão.

Uma outra é quando o protagonista de “Amarás” revela o autoengano de que a comunidade homossexual estaria bem quando saíssem do armário, a aids estivesse controlada, o casamento gay fosse oficializado e o bullying acabasse: “Continuamos esperando o momento em que não vamos mais nos sentir diferentes das outras pessoas. Mas o fato é que somos diferentes. Já é hora de aceitar e lidar com isso” (p.28). Ou seja: o caminho para quem é diferente não é ficar procurando ser diferente de si.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/05/22/no-contrafluxo-da-dor.html