Nóbrega e o gingado da arte brasileira
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 11 de Junho de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A vitalidade criativa da arte brasileira tem o dom de dar unicidade aos mais diversificados fenômenos da nossa cultura. Muitos artistas expressam essa condição sem ao menos se dar conta da sua dimensão transformadora. Entre os que têm a consciência dessa força motriz da vida cotidiana, como objeto estético, religioso e de diversão, merece destaque o virtuoso Antônio Nóbrega. O entendimento da grandeza do que representa está presente no cuidado do seu figurino, no domínio do corpo, na relação afetuosa com os instrumentos, na releitura de antigos reisados, cheganças pastoris, passos, cantigas dançadas e danças cantadas que são os atributos essenciais da sua obra.

Cada ginga, cada canto e cada intenção exibida por Nóbrega em seus espetáculos salta para a apreciação do público como um pequeno inteiro que é múltiplo de todos os outros que formam o conjunto de inteiros da nossa arte popular. A sua apreciável habilidade de dar liga a esses mínimos múltiplos comuns começa pelos pés, ora com apoio nos metatarsos, ora nos calcanhares e vai subindo como um irmão Anicete espantando marimbondos. Faz o passo da tesoura, arqueia as pernas, dá meia volta, empina o peito, eleva os braços e abraça o palco com um abraço inteiro de brasilidade. Coloca o espetáculo em um estágio comunitarista, ultrapassando previsibilidades cênicas e dando impulsos decisivos aos elementos identitários da platéia.

A arte de Antônio Nóbrega nos move rumo ao maravilhoso sentimento de nos sentirmos contidos nos outros, mesmo sendo diferentes. Em suas apresentações, a sublimação da coexistência faz com que o outro nunca pareça separadamente concreto, nunca pareça exótico. Tem um quê de praça recriada em cena viva, qualquer coisa de espaço de enunciação onde é normal cada um sentir livremente em si a presença do outro. É uma arte universal sem a presunção de ser internacional, no sentido de busca de padrões de uniformidade. Inspirada e transpirada nas dessemelhanças de nossas igualdades e diferenças, reinventa o conceito teatral de distanciamento brechtiano ao tratar o envolvimento emocional do espectador pela relação da subjetividade interior de cada um e de todos.

O trabalho de Antônio Nóbrega é um propulsor da diversidade singular da nossa arte repleta de inventividades. Sua engrenagem artística se comunica permanentemente com a cultura popular por meio de uma correia de ventoinha temperada com os fios de uma idéia central de país. Ele reúne as qualidades de estudioso e intérprete criativo. Domina várias linguagens. Tem posicionamento claro, por isso, embora reconhecido e cultuado, não se deixa deslumbrar pelo simulacro das celebridades. Discreto, decente, talentoso, generoso, Nóbrega se revela sereno e lúcido no exercício do seu ofício de brincante.

Ele coloca a arte brasileira no contexto do Brasil. Em sua obra coabitam o belo e a adversidade em gestos, trejeitos, cantos e contos bem humorados, em um permanente zelo urbano por tantas e tantas referências artístico-culturais espalhadas pelas brenhas do Brasil. Cuida de tudo isso como quem tem o compromisso de levar em si o caráter sagrado de um altar perfumado com leite de rosas. Nóbrega consegue dar alcance a arte popular sem causar vertigens estilosas. Entra na cadeia de ecos da tradicionalização para imprimir sua sensibilidade e participar da reconstituição permanente do que somos. Com isso nos presenteia com valiosas oportunidades de experimentação em uma agenda alternativa de emoções fundadas na nossa própria cultura.

O espírito de brincante, manifestado em uma extensão artística que passa “do épico ao farsesco, do sóbrio ao desmedido, do lírico ao festivo”, como o próprio Nóbrega assimila, nos municia de valores e de amor próprio para que nos desafiemos a um encontro com as raízes e antenas que nos afetam em nossa vida cotidiana. Ele pode nos oferecer o que temos de mais precioso porque integra o composto do nosso imaginário coletivo. Quando nos vemos em nossa fartura mais expressiva, que é a arte, podemos respirar fundo e ganhar oxigênio para enfrentar a guerra de estereótipos a que estamos submetidos instante após instante.

As manifestações culturais são atingidas por condições históricas inexoráveis. Evoluem independentemente da compreensão que cada gente tem a seu respeito, mas bem ou mal é o que determina o estágio de desenvolvimento dos povos. Neste aspecto, artistas como Antônio Nóbrega ganham mais importância ainda por sua trajetória de paciência, equilíbrio e honestidade artística. Quando ele sobe ao palco é sempre um momento de brasileirice revelada. Eleva o brilho dos mestres populares, toca rabeca com magnitude, dá requinte à pluralidade da nossa criação e subverte a lógica do consumismo delirante.

Os problemas fundamentais da vida são aqueles que nos restringem as possibilidades de realização dos nossos desejos reais. E o melhor lugar para sabermos do paradeiro das nossas aspirações é o magneto cultural. Não o que está infestado pela larva amiga do supérfluo, mas o que nos atrai por descrever as nossas peculiaridades. Quando nos observamos em espetáculos de artistas como Antônio Nóbrega nos pegamos tirando para dançar a cara-metade do nosso modo de ser e de pensar. Digo isso porque no Brasil, apesar dos bombardeios multinacionais de violência simbólica, a arte é a “instituição” que mais consegue pôr em discussão o que é mesmo ser brasileiro.