Nomes de fantasia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 19 de Agosto de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Todos os nomes algum dia foram estranhos, até se tornarem lugar-comum. Todos têm e tiveram seus motivos de existirem. O Brasil, como um país em formação, passa de tempos em tempos por ondas de novos nomes. Somos uma nação em permanente movimento de constituição. Diferentemente das sociedades mais antigas e mais imutáveis, ainda temos lugar para esse tipo de confusão sedimentária. A nossa liberdade mestiça anda solta pelo improvável. Nela, toda diferença desfila paradoxalmente como uma semelhança cativante, uma propriedade do indivíduo que segue o sentido da realidade pelas relações ficcionais da sabedoria do coração.

Os nomes que muitos consideram anormais parecem resultar mais de um esforço de preservação social do que simples invencionices. Para tentarem acompanhar o que lhes chega a todo instante como novidade, as pessoas se afastam do modo mais difundido de nominação para poderem ser percebidas em uma lógica discriminada, mas capaz de chamar a atenção. São modificações distintas de uma mesma essência. A escolha do nome decorre normalmente da demonstração que se quer dar à sociedade de como gostaríamos de vê-la tratando a quem amamos. Neste sentido, há nomes que são apenas nomes de chamar, a serem construídos por quem os recebe; há os nomes com carmas incutidos, como antecipação de conseqüências aspiradas; e há os nomes de fantasia, que assinam pessoas como se fossem marcas.

As manifestações de nomes ornamentais se dão em freqüências diferentes, mas comumente suportadas pelo mesmo anseio de realce. Nos grupos mais favorecidos economicamente, elas acontecem como elemento de auto-afirmação de privilégio. É como quem compra, muitas vezes sem poder, um carro importado de luxo, com motor de alta potência, para andar se arrastando pelas ruas acidentadas de Fortaleza. Nas classes mais humildes, esses nomes de fantasia são colocados nos filhos como quem monta uma vendinha de economia informal, a exemplo do “Vendedor de Bananas”, da música de Jorge Ben(jor), que queria andar sempre na moda: “Mãe, eu vendo bananas, mãe / mas eu sou honrado, mãe”. Infelizmente, nos tempos atuais, em todas as camadas sociais, a força da noção de felicidade urgente tem roubado muito desse sentido de honradez.

Ao fazer suas releituras das influências que recebem, as pessoas cultivam dentro de si, dentro do seu universo de conhecimento, de crença e de percepção da realidade, novas e renovadas expectativas do viver. A opção por nomes próprios ornamentais me parece ser uma procura da diferenciação como vetor de organização no caos. O nome de alguém visto como testemunho abstrato de si, como revelação de busca no espaço social negado pela homogeneização insolvente. Essa aparente contradição está explícita também em outros contornos sociais. Quando uma agência de propaganda recebe o nome de “África”, como é o caso da empresa do publicitário Nizan Guanaes, e uma revista cult é colocada no mercado como o nome “Piauí”, recém-lançada pelo cineasta João Moreira Salles, é como se existisse lugar para o que o continente mais pobre do planeta e o estado mais pobre do Brasil significam, embora não haja lugar para a sua geografia humana no mundo do desenvolvimento.

Quando pais e mães colocam entusiasticamente o nome de ídolos nos filhos estão na verdade propondo ao acaso uma transferência do desejo como força geradora do destino. Os nomes fonéticos, tais como Maiquel, em alusão à estrela da música pop, Michael Jackson, ou Daiana, numa referência à princesa Diana, da Inglaterra (morta em 1997 num acidente de carro em Paris) são tão comuns no mundo contemporâneo quanto as consoantes dobradas.

A não observação dessas peculiaridades, tem causado inclusive erros no marketing político. A mudança de foco no nome do candidato Alckmin (PSDB) para o seu prenome “Geraldo” na campanha presidencial deste ano, especialmente no Nordeste – região vista pelos marqueteiros sudestinos como atrasada e cheia de ignorantes – comprova o pleno desconhecimento dessas idiossincrasias. Já o presidente Lula (PT) transita leve e fagueiro pelo topo dos gráficos das pesquisas com o seu nome de fantasia, inteligentemente incorporado ao nome de registro em cartório.

Essa questão de nome próprio é muito complexa. No tempo em que os padres tinham o poder de impor nomes para as pessoas, era moda nome de santo. A artista plástica Nice Firmeza contou-me na semana passada que, apesar de seus pais quererem que seu nome fosse Nice, o Monsenhor Bruno, que a batizou, fez questão de lhe dar o sacramento com o nome de Maria, que ela nunca usou. É famosa a história de que o escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948) teria, aos dez anos, mudado o nome de José Renato para José Bento, com a finalidade de usar uma bengala que herdara do avô com as iniciais JBML. Interpretações mais recentes levam a crer que o nome “Renato” não passou do batistério, por isso, Lobato pôde ainda menino desfrutar, como queria, da bengala do pai José Bento Marcondes Lobato.

Presenciei certa vez, em um bar de Fortaleza, uma discussão acirrada entre o teatrólogo Oswald Barroso e o cartunista Albert Piauí por conta de nome. O artista piauiense chamou desavisadamente o Oswald de “Osvaldo”. Este reagiu, lembrando que seu nome deveria ser pronunciado como o do escritor Oswald de Andrade (1890 – 1954). Albert achou a zanga de Oswald sem sentido e disse que não entendia o motivo do autor cearense se recusar a ser chamado abrasileiradamente de “Osvaldo”. Enfesado com a insistência de Albert, Oswald retrucou, dizendo que a partir de então o passaria a chamar simplesmente de “Alberto”. O cartunista não gostou, disse que nunca tinha sido chamado assim. Percebi que a quiliza iria longe e retirei-me da mesa sem jamais ter notícia se eles conseguiram chegar ou não a um acordo.

Do tempo das novelas de rádio, herdamos toda uma geração de “Isabel Cristina”, por conta da personagem do melodrama “O Direito de Nascer”, adaptado da obra do escritor cubano Félix Caignet. Hoje, as novelas de televisão têm produzido as suas Fulanas e Sicranas, embora proliferem muitas outras referências na forma de chamar alguém no Brasil. Dizer que uma pessoa é de outra continua sendo uma prática no interior. Passando pela cidade de Ipú pode-se ver nos muros a propaganda política da Corrinha do Torrim, que pode ser lida como Socorro, mulher do Torres. Em Independência, onde nasci, tem as gêmeas Lúcia de Fátima e Fátima de Lúcia – uma da outra e vice-versa. Nomes construídos a partir de fusões também é comum, que o diga a Welgra, filha do casal Wellington e Graça. Mas nesse mundo de nomes de fantasia, o que mais me chama a atenção são os não-nomes, ou seja, as pessoas que preferem ser chamadas por nomes que não são os seus: a Neide, chama-se Cleide; a Eulene, atende por Lena; e assim por diante… E assim vamos tecendo a multiplicidade identitária brasileira.