Nossa herança tapuia
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 05 de Setembro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Dá gosto apreciar os nomes das localidades cearenses. Grande parte da toponímia dos municípios e distritos vem de vocabulário nativo. A terra dos juazeiros, tem o nome de Aiuaba; os exímios produtores de flechas eram de Ubajara; as pedras estalam em Itapipoca. A força e a originalidade desse fato notável sempre mexeu com a minha curiosidade, mas fico inquieto mesmo é com o tratamento desdenhoso que damos a um patrimônio tão basilar da nossa cultura. Sequer procuramos investigar o significado revelador dessas palavras. Convivemos com elas como se não pudessem nos dizer nada, como se não tivessem nada a acrescentar a nossas vidas.

Venho acompanhado o esforço da repórter Rosa Sá de, neste O POVO, procurar dar visibilidade a questão. No início do ano ela entrevistou o historiador R. Batista Aragão, autor de “Índios do Ceará & Topônimos Indígenas” e mais recentemente foi a vez do agrônomo Márlio Falcão, que publicou “Ciará Terra do Sol”. A investida certeira de Rosa me encorajou a refletir mais sobre o assunto e cheguei à conclusão de que precisamos sedimentar o nosso apego aos valores conaturais de uma história apagada para não deixar lembranças. Uma história que hiberna entre os termos sobreviventes da língua nativa e a realidade, versões e vitórias da prolongada fúria colonial.

A flagrante desfeita antropológica que resulta do nosso desconhecimento ao significado da nomenclatura dos lugares onde nascemos e vivemos, pesa na afirmação da cearensidade. É a nossa herança tapuia que estamos negando. É o símbolo de bravura dos que não se entregaram, dos que não aceitaram perder a terra nem a liberdade em vão, embora tenham sido praticamente exterminados por isso. Enquanto não compreendermos essas referências dificilmente saberemos ser uma gente altiva e preparada para superar os danos da sujeição que vem atravancando o desenvolvimento justo do Ceará.

Temos muito de sangue nativo no nosso coração quase branco de batida nômade. Deixar de auscultar a pulsão ancestral de uma gente que, no lugar de sonhar com o acúmulo de riquezas e com eternidades edificadas, sonhava com chuva, frutos de cajueiros silvestres, favos de jandaíra, cantos de pássaros soltos e muitos banhos em riachos que não escavaram o leito nem manejaram o curso das águas. Gente de arte utilitária, amante do balançar das redes de fibras vegetais e da cura raizeira. Gente pagã, determinada, aguerrida. Gente que, via de regra, foi desagregada e rotulada de tapuia simplesmente por se negar a ser espoliada de seu próprio ambiente natural e divino.

A tolerância, como um atributo artificial que a humanidade inventou para equilibrar a relação entre as pessoas, não tinha valia na razão dos caçadores de índios em suas perseguições categóricas aos chamados inassimiláveis. A diplomacia missionária atenuava um pouco o rosto da violência com a retórica do domínio por vias da harmonia. Mas não houve jeito. Os confrontos entre as tropas governamentais e os nativos foram sangrentos. A ação dos mercenários bandeirantes, então, nem se fala. A História do Ceará transborda em conflitos, levantes, combates cerrados, matanças e rebeliões. Os que não se submetiam à disciplina oficial e catequética eram logo acusados de ferozes, atrozes, arredios, rudes, brutos e “passados a ferro e fogo”.

Os desbravadores não reconheciam a posse dos nativos e os assassinavam para poder implementar os assentamentos das fazendas. Aldeias e mais aldeias eram desmontadas e grupos inteiros debandados. Os missionários cumpriam a tarefa de tentar reunir as tribos sem-terras para agrupá-las nas áreas não contempladas pelas sesmarias. Esses realdeamentos tinham como objetivo a manutenção da situação sob controle e, em certos casos, o encurralamento dos desertores para facilitar chacinas. Os guerreiros tapuias, por sua vez, invadiam fazendas, fortificações e chegaram a atacar inclusive a vila de Aquiraz, que foi a primeira capital cearense.

Nosso passado tem uma longa e mal-contada epopéia de coragem e consistência cultural. As paredes das ruas, os bairros, os distritos e os municípios que ainda mantém nomes indígenas guardam muitas pistas da nossa história. Com o tempo, a ignorância e o continuado desinteresse por esse patrimônio, a tendência é que os beneficiários da nossa falsa passividade continuem passando a borracha em cada uma dessas palavras, como há muito vem sendo feito com bastante competência. Tataíra virou Dep. Irapuan Pinheiro; Humaitá, Sen. Pompeu; Quixará, Farias Brito; Jirau, Piquet Carneiro; Mocambo, Pires Ferreira… e assim por diante.

Desde cedo procurei descobrir qual a razão de ser Independência, o nome do lugar onde eu nasci. Os municípios vizinhos têm os nomes indígenas de Tauá, Tamboril, Crateús, Pedra Branca… Descobri apenas que antes Independência era Pelo Sinal. A versão mais próxima que consegui diz que essa mudança de nomenclatura tem relação com o episódio da Independência do Brasil. Teria saído daquela região parte do contingente que lutou contra a resistência final no Maranhão. O que justificaria a existência de uma localidade também chamada Independência por lá. Como toda a área do sertão de Independência era da jurisdição de Vila Mocha de Oeiras, no Piauí, tenho vontade de um dia atravessar a fronteira e tirar essa dúvida a limpo.