Notícias do Brasil de dentro
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 29 de Setembro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Em papel de embrulho com etiqueta recortada à mão, endereçamento manuscrito e com selos dos correios definidos em estampas de instrumentos musicais, é a forma como começa a ser comercializado o álbum duplo da cantora Giovanna Farias. Filha do notável poeta e cantador Vital Farias ela esbanja brasilidade de raiz em seu Uyraplural. A obra é fruto de pura simbiose de talentos. O pai não procura se esconder para revelar as qualidades da filha cantante. Longe de qualquer faz de conta, ele aparece cheio de altivez ao lado dela como provedor artístico e técnico, assinando boa parte das composições, arranjos, direção e regência, além de cantar, tocar violão, piano, zabumba, triângulo, reco-reco, fole de oito baixos e o que foi preciso para este ato de fazer arte com as próprias mãos.

No encarte que acompanha os discos, Vital Farias faz um discurso eloqüente contra a farsa da indústria fonográfica e declara que tomou “a liberdade de sonhar, num país em que os sonhos são destruídos como quem mata mosquito à beira de um rio à tardinha”. E assina pessoalmente exemplar por exemplar. No fundo de caixa, agradece aos órgãos públicos de cultura “por não terem ajudado em nada, portanto, atrapalharam bem menos”. Leio o desabafo de Vital e escuto o canto de Giovanna como quem contempla a erupção de belas lavas incandescentes de uma cultura soterrada pelos tratores da estupidez do fundamentalismo de mercado.

O modelo triunfante dos possuídos pelo simulacro produz a realidade trágica da metáfora da boca-de-fumo exposta no filme Cidade de Deus, de Fernando Meireles. O consumismo é frustrante por não ser conclusivo no fascínio dos seus objetos. É neste ponto que Uyraplural transcende a lógica da pintura dominante com pinceladas perturbadoras de notícias do Brasil de dentro. Um Brasil que não se confunde com a coerção rude das mulas entorpecidas das favelas nem com a violência sofisticada dos traficantes do sistema financeiro. Um Brasil que não quer vacilar na sua proposição de felicidade, caindo na armadilha do presente eternizado diante da fragilidade e efemeridade da vida, como uma natureza-morta.

A obra de Giovanna e Vital Farias mais parece um espartano sopro de vida que vem do sertão com jeito de flor do cangaço e apurado gosto de frutinha de xiquexique. Por ser arte de verdade, nascida de impetuosa vivência pessoal, é polinizadora de sonoridades imagéticas, quase impressionistas em seu jeito bem próprio de fixar versos e sons em reflexos de inspiradas composições. Ao valorizar a incidência da luz criativa arrebatadora, Uyraplural reflete em cores e nuanças telúricas a obstinação de Renoir (1841-1919) que, vitima de artrite, pintava com os pincéis amarrados nas mãos e nunca deixou de acreditar na beleza da vida.

Nos dias que parecem iguais, dentro do cenário contaminado da indústria fonográfica, trabalhos como este de Vital e Giovanna surgem como uma esplêndida manifestação de sem-rádio. Da Parahyba parte o levante cangaceiro. É lampi… é lampi… é Lampião. Antônio Conselheiro e um arraial no sertão. Favela em Canudos era uma árvore espinhosa e resistente, cujas sementes, bastante nutritivas, espalham-se em estalos de miragem solar. Suas folhas secas transformam-se em forragem especial para cabras e ovelhas leiteiras. A visão de arruamento dos centros urbanos aproveitou apenas a palavra favela para denominar os bolsões de pobreza das periferias.

Uyraplural revolve esse olhar com poesia e melodia admiráveis. Os dois CDs têm 20 faixas, incluindo algumas cantigas antológicas de Vital Farias, tais como Veja Margarida, Caso você case, Sete cantigas para voar, Ai que sodade d´ocê e Era casa, era jardim. Conta ainda com composições de Alcyr Guimarães (Vitalizar), Juvenal Pedro da Silva (Quem vive assim como eu), Gilvan Santos (Ciranda de terreiro) e duas do maestro Waldemar Henrique (Tamba-tajá e Uyrapuru). Para bater a ponta do ilhós da sensibilidade plural, entram na cantoria Livardo Alves (Via crucis da mulher brasileira) e Fernando Guimarães (Saga de José e Maria) em parcerias com Vital.

No momento em que a população brasileira sinaliza que quer, sem os tradicionais arranjos dos blocos políticos dominantes, promover a primeira alternância real de poder na história do país, com a eleição de Lula para a Presidência da República, dá gosto ouvir esses sons e sonhos de um Brasil criativo e belo. O neologismo Uyraplural canta a nossa inventividade numa versão edificante da Música Plural Brasileira. “Certo do que digo agora / onde a vista não alcança / nasce planta que apodrece / mesmo sem saber que é planta”. Vital Farias apresenta a filha com os cuidados e excessos de pai. Giovanna é debutante na discografia de um novo país que começa a reorientar seus horizontes.