O aniversário de Fortaleza
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 06 de Novembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tramita na Câmara Municipal um projeto de lei que quer aumentar em 122 anos a idade de Fortaleza. O aniversário da cidade é comemorado atualmente no dia 13 de abril, pois nesse dia e mês do ano de 1726 foi instalada a vila que deu origem à nossa cidade. A data proposta pelo PL 0360/07 é 25 de julho de 1604, ocasião em que os portugueses montaram na barra do rio Ceará um dos muitos fortins que construíram ao longo da costa brasileira, com a finalidade de proteger de outros colonizadores o amplo território por eles ocupado. Essa paliçada, que recebeu o nome de São Tiago, foi feita como base militar para a expulsão dos franceses, instalados então na serra da Ibiapaba. Durou muito pouco e chegou a ser reconstruída com a denominação de São Sebastião, antes de desaparecer de vez por força de ataques nativos e holandeses.

Muitas variáveis históricas podem servir de base para a argumentação do estabelecimento da data de aniversário de uma cidade. Muitos motivos também. As duas referências em questão me parecem bastante claras, enquanto fatos evidentes. As intenções da mudança proposta, não tanto. De qualquer forma, o que está em jogo e precisa ser tratado nesta ocasião é um conflito de idéias e de ideais, originado na diferença de compreensão política, existente com relação ao marco que melhor define o sentido de destino de um lugar.

A premissa simplificadora de que a origem de Fortaleza deveria ser atrelada a uma construção colonial efêmera, não me parece adequada, por não considerar o fator da intenção de fundar um lugar. Basta recordar que somente quase meio século depois, com a construção do forte holandês na embocadura do riacho Pajeú; forte esse tomado pelos portugueses em 1654, foi que começou a se formar um povoado que tempos depois viria a justificar a decisão política dos portugueses de iniciar a formação administrativa que deu origem a Fortaleza, em 13 de abril de 1726. Mesmo assim, a vila levou ainda cerca de um século para, impulsionada pela economia do algodão, assumir a condição de cidade, em 17 de março de 1823.

Diante de tudo isso, envelhecer Fortaleza não combina com a sua dinâmica histórica nem com as feições urbanas que dela resultaram. Bem diferente da maioria das capitais nordestinas e a despeito das movimentações de disputa de invasores no trecho litorâneo onde se desenvolveu, a capital cearense foi construída basicamente como reflexo de uma situação de entreposto do comércio algodoeiro. Para tirar essa dúvida não precisa de muita conversa; uma caminhada por suas ruas é o suficiente para ver um funcionamento simbólico totalmente distante do perfil pretendido pelos argumentos que ameaçam esconder o viço de sua juventude.

As pessoas que acreditam na cidadania precisam recorrer às suas origens e, ao fazerem isso, precisam identificar alusões motivadoras da criação do lugar onde moram. E para que o fortalezense possa se reencontrar com a sua biografia social urbana é necessário que a história da cidade seja primeiramente livre da predominância do interesse colonial que domina a sua narrativa. Se a subjetividade dos sentimentos não pode ser determinada pela arbitrariedade da lei, a mudança de data do aniversário da cidade seria um retrocesso por estar fundamentada na ilusão de prolongamento de uma influência externa do tipo que não condiz com o espírito libertário manifestado na vida política e na cultura de Fortaleza.

A memória é um recurso interior que trabalha com conteúdos que são exteriores. Nem por isso deve estar subordinada ao encadeamento de eventos. A vida não acontece de forma cronológica; a cronologia é apenas uma das maneiras de ordenar o tempo. Os episódios e as datas são referências que contribuem para colocar o tempo em escala imaginável, mas não são, em si, a história, porque sozinhos não estabelecem os seus próprios significados. Somente quando contextualizados, quando entendidos em sua dimensão simbólica e quando trazidos ao presente, eles podem influenciar as pessoas a se voltarem para o que são, como resposta à vontade de querer ser.

A questão da fundação dos lugares não deve, portanto, ser reduzida a existência de provas, com base em vestígios utilizados para registros dos fatos. Construir provas é uma das tarefas do historiador. Entretanto isso não é o bastante, pois tais saliências podem servir simplesmente para sustentar enganos e promover recusas de reparações históricas. O historiador precisa buscar a história com os olhos no futuro e não com a mente ancorada no passado. Apenas um olhar histórico voltado para o que uma gente quer se tornar pode ser ao mesmo tempo transformador e preservador da memória. É uma questão de medida da sensatez.

Entendo que devemos aproveitar o que está se passando na Câmara Municipal, com relação à tentativa de realinhamento colonial de Fortaleza, como uma oportunidade de afinação das nossas adaptações perceptivas, sob pena de selarmos de uma vez por todas a indiferença dos representantes políticos municipais para com a cidade e a declaração de impotência da sociedade diante dos seus interesses coletivos mais profundos. Não acredito que realçar a caricatura de uma deformação da nossa educação política seja o desejo da maioria dos parlamentares daquela casa legislativa.

A responsabilidade da Câmara Municipal diante desta matéria é muito grande. A data de 13 de abril de 1726 é considerada o aniversário de Fortaleza porque define no tempo o momento da institucionalização do caráter urbano da cidade. Foi a partir da sua elevação a vila que Fortaleza passou a desenvolver um cenário urbano que tem, hoje, o terceiro maior raio de influência do Brasil, movendo um conjunto populacional de mais de 20 milhões de pessoas do Ceará e dos estados do Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte, conforme pesquisa divulgada mês passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE.

Para saber o que devemos ou podemos realmente fazer com todo esse potencial é indispensável que compreendamos os fatores que associam a necessidade e a criação histórica de um ambiente construído. Cidades não nascem sem que haja uma razão para a sua existência. Pode ser por força de entroncamento comercial, decisão política de controle de ocupação territorial, racionalidade estratégica, descentralização de funções político-administrativas, criação de colégios eleitorais, movimentações religiosas, migrações de refugiados, convergência de serviços diferenciados, enfim, por algum motivo que justifique a estruturação de perspectivas de evolução.

Nas muitas ocasiões em que, por conta de ser autor do livro Fortaleza (Cortez Editora) e por acreditar na força revigorante da história, tenho ido a escolas públicas e privadas conversar com educadores e estudantes. Quando convido as crianças a procurarem comigo o local onde elas se encontram hoje na cidade, a partir da ilustração do campo dunar sobre o qual Fortaleza foi construída, a meninada entra na paisagem e facilmente se encanta com a fantasia de transitar na linha do tempo. Percebo nessas ocasiões que para elas é curioso saber quando se deu a passagem das “dunas andantes” para a “cidade banhada de sol”. Falo de processo, mas ao citar a elevação à condição de vila, em 13 de abril de 1726, tenho a sensação de que elas compreendem que, com uma baliza honesta, as condições históricas ficam abertas tanto às referências nativas, quanto às colonizadoras e suas mesclas, que somos nós.