O blefe da velocidade
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 29 de Agosto de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Para camuflar a intenção das mega corporações econômicas de sair tragando empresas, nação por nação, até controlar com segurança o mercado mundial, os chamados facilitadores da reestruturação saíram apregoando que todos corressem, pois o maior conflito da nova realidade não estaria na possibilidade dos grandes comerem os pequenos, mas dos mais velozes devorarem os mais lentos. De uma hora para outra ficou no ar a impressão de que bastaria alguém ter um lerdo na área para garantir a sobrevivência dos demais. Nunca os vagarosos foram tão bem tratados pelos colegas. Em caso de ameaça, todos sabiam quem seria comido.

Enquanto essa delinqüência mercantil guiava-se pela lei do cronômetro, o processo de desnacionalização de organizações empresariais foi intensificado. A correria sem rumo serviu apenas para desagregar setores e criar presas fáceis que passaram a ser abocanhadas pelos gigantes econômicos do Hemisfério Norte. Entramos em um jogo sem conhecer nem discutir as regras. Não tivemos sequer a inteligência da tartaruga da milenar fábula de Esopo que, ao ter sua lentidão esnobada pelo veloz coelho, desafiou-o: “Não tenho dúvidas de que você ganharia de mim numa corrida curta. Entretanto, para mim, uma verdadeira corrida é a maratona”. Saiu vitoriosa e a moral da história é “devagar se vai ao longe…”.

Em condições desiguais, aceitar pacificamente as regras determinadas pelo adversário é muitas vezes suicídio. O Brasil está morrendo. Nós estamos morrendo. Quando imagino que tudo isso poderia ser bem diferente se conseguíssemos desenhar um horizonte comum, para o qual nos dirigíssemos com toda a exuberância natural e cultural que nos cerca, renasce em mim uma vontade inexplicável de sair desafiando esse engodo da velocidade. Não temos como representar o círculo dos avanços tecnológicos por meio dos nossos quadrados inventivos, mas o nosso conhecimento pertinente não é tão desprezível a ponto de impedir que evitemos pelo menos as causalidades dos efeitos que virão.

De tanto correr sem saber para onde, passamos a criar efeitos, como se não necessitássemos de causa alguma para isso. A velocidade sem projeto social constrói muitos prédios de luxo; loteia dunas; vende o patrimônio público; rebaixa a cultura a produtos de shopping, supermercado e farmácia; atropela a educação com os encantos da indústria cultural; enfim, desterritorializa as pessoas, seus negócios e seus sonhos. No corre-corre nem percebemos que o tipo de campanha que fazemos contra a violência é uma excelente propaganda para a venda de armas; que a forma como encenamos o combate às drogas tem contribuído para aumentar o consumo de entorpecentes; e que as ações de marketing social não chegam a devolver nem de longe o que é tirado da população indevidamente em transações escusas.

É um disparate pensar na homogeneização da velocidade em culturas diferentes. Até a velocidade da luz só encontra estabilidade no vácuo. Na água, no ar e em outros meios absorventes ou dispersivos ela muda a rapidez da sua propagação. Na humanidade, como na física, ser veloz também varia conforme os costumes, as crenças, o saber e o estilo de cada gente. Forçar um ritmo exótico é desramar séculos de valores sedimentados paulatinamente. Cada cultura tem o seu pulso luminoso que levou tempo para vingar, para brilhar, para ter luz própria. Por isso, precisamos cair em nós, no instante que der. O blefe da velocidade só ocorre com sucesso quando descobre algum espaço cultural vazio. Em nome da pressa pelo respeito às minorias, estimula a segregação e na urgência de seguir as trilhas virtuais, aniquila o idioma.

O governo brasileiro, que historicamente tem recusado a conduzir a nossa contribuição à unidade latino-americana, chama apressado os chefes de estado da América do Sul para um encontro em Brasília, no qual serão discutidos o fortalecimento da democracia, a intensificação do comércio, integração infraestrutural, o combate ao narcotráfico e a priorização da ciência e tecnologia. Sem ter qualquer motivo para acreditar que o propósito do encontro é a cooperação regional para enfrentar os blocos Nafta, União Européia e Asean, dá uma tristeza pensar que mais uma vez o Brasil fará o ridículo papel do sargento, no convencimento da rendição continental aos grandes e não necessariamente aos mais velozes.

O objetivo dessa missão estrangeira, parece mais com estratégia de expansão do mercado de armas, em nome do narcotráfico; com justificativa para o controle da nossa biodiversidade, em nome do meio ambiente; e com a tentativa de melhoria das condições estruturais para baixar custos e aumentar a produtividade das grandes corporações que já engoliram boa parte das nossas empresas privadas e estatais. Fosse outra a estratégia, certamente teríamos na pauta o fortalecimento e integração da diversidade cultural sul-americana. Mas isso, como a sabedoria popular deixou dito nas palavras da tartaruga de Esopo (que pacientemente atravessaram o tempo) aconteceria se pensássemos em uma maratona civilizatória e não nos improvisos das corridas de curto prazo.