O adensamento urbano, a verticalização das cidades e a intensificação do hábito de comer alimentos prontos vêm reduzindo os espaços dos quintais, afetando com isso a memória de saberes e sabores da cozinha de força socializante. Com eles desaparece o vínculo direto de quem cozinha com quem vai comer, distanciando aromas e sons da preparação, mudanças de cores, texturas, consistência e todas as alterações bioquímicas que transformam os alimentos ante a magia das chamas e das brasas.

Atenta a esse fenômeno de apagamento cultural, a artista visual Luisa Macêdo, “mineira de estômago e paulistana de nascimento”, também formada em gastronomia, criou o projeto “O cheiro do gosto”, com o qual lança olhares pelas frestas cada vez mais comprimidas entre os edifícios de Belo Horizonte, aguçando o olfato na localização de quintais onde ainda existem reservas do patrimônio culinário brasileiro na capital mineira.

Nesse misto de mirada e farejamento, ela chegou a quatro mulheres cozinheiras que fazem de seus quintais territórios de presença soberana da força da mulher no cuidado de plantas medicinais e alimentares, mas também da função aglutinadora e festiva do ato de cozinhar. Está tudo publicado em um portal de internet e em um livro, ambos com o mesmo nome do projeto. Luisa Macedo trabalha com a estética da penumbra, possibilitando o protagonismo do vapor das panelas e do caminho percorrido pelos cheiros.

Belinha é Rainha da Guarda do Congado 13 de Maio, no bairro Concórdia. Gosta de fazer comida para muita gente e respeitando a natureza dos alimentos, porque isso fortalece as crenças. Faz refeições cotidianas e de celebração, sempre com a consciência de que é preciso paciência em consideração ao tempo de apuração do sabor. Uma de suas máximas é: “Pitada é pitada, e essa pitada, ela faz o serviço dela”.

Detalhe do livro “O cheiro do gosto”, de Luisa Macêdo.

Lúcia tem uma horta agroecológica na ocupação Tomás Balduíno, no bairro Areias, onde vive. Revela satisfação em revolver a terra, semear, colher o alimento, preparar e mexer na panela até “fazer o sabor flutuar”. Agricultora que migrou para a cidade, ela tem no angu de banana verde uma das suas boas lembranças da infância na roça.

Simone trabalha como manicure no Quilombo Souza, do bairro Santa Tereza. Gosta de preparar alimento de cura e cozinhar para festividades. Assim como Lúcia, tem recordações açucaradas e gosta de mexer panela de doce até “subir o cheiro da especiaria”. A liberdade do aroma é um princípio da sua culinária: “Não uso tampa na panela porque gosto de escutar a comida falando comigo”.

Wanuza mora na Vila Barragem Santa Lúcia, umas das quatro comunidades do Morro do Papagaio. É cozinheira antes de qualquer coisa, e demonstra orgulho do legado culinário que recebeu da mãe biológica e da mãe de criação, do qual fazem parte segredos como o do tempo do quiabo. Assim como recebeu revelações de como deixar receitas saborosas, gosta de passar para frente o que sabe: “Eu ensino o meu tempero porque quero que a pessoa aprenda o meu sabor”.

O projeto de Luisa Macedo tem o cheiro reconfortante dos trabalhos que se espalham para outros questionamentos da experiência cidadã, tais como os alcances políticos tanto do poder da inteligência social-culinária feminina quanto dos limites culturais da contraposição do veganismo e da noção de alimento cru em contraposição ao cozido. Como as respostas de “O cheiro do gosto”, essas e outras tantas podem ser encontradas nas frestas dos pensamentos verticalizados.

 

Fonte:
Jornal O POVO