O cinema e a volta por baixo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 12 de Fevereiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Das quatro telas que massificam as iluminuras do mundo contemporâneo, a primeira delas, a do cinema, é a que está mais atrasada em termos de inovação tecnológica de exibição. A televisão avançou significativamente na era digital, o computador ganhou fabulosos recursos de interação e o celular virou febre de consumo. Para não desaparecer do mercado em uma sociedade que trocou os sonhos por metas, a indústria do cinema vem sendo repensada e está correndo atrás das outras telas.

Quando tomei conhecimento de que o cinema estava se preparando para inovar, e isso é coisa de três anos para cá, pensei que seria algo como projeções holográficas, que dessem volume às imagens, dispensando os incômodos óculos descartáveis ou reutilizáveis. Entretanto, o que tem sido apresentado como novidade diferenciadora das demais telas é um tipo de exibição que não difere tanto das antigas sessões de filme 3D e seus ensebados óculos de celofane, com uma lente azul e outra vermelha, embora as lentes atuais sejam polimerizadas e as salas de exibição tenham projeção digital a 144 quadros por segundo, com imagens projetadas em tela prata para garantir o efeito tridimensional.

É melhor do que nada, claro. Sinto uma certa frustração com a nova tecnologia 3D exatamente porque das quatro telas a que mais me atrai é a do cinema. Não é questão de meio, mas de estética e de situação de convivência. Gosto de estar junto das pessoas na sala escura apreciando um mesmo filme, na cumplicidade da apresentação sem pausa da sala escura. Por isso, a minha expectativa era a de que a renovação na tela do cinema fosse mais criativa e mais envolvente do que uma recorrência à velha projeção em três dimensões.

Por ter características mais humanizantes e menos invasivas do que as demais telas, e diante da agenda social que exige nos tempos atuais mais respeito às pessoas e ao planeta, o cinema poderia muito bem optar por uma diferenciação de conteúdo de qualidade, como tem feito parte da indústria desperta que já se voltou para o diferencial competitivo da sustentabilidade. Infelizmente, o paradigma que deu suporte ao sucesso da máquina de comunicação ideológica hollywoodiana não permite que ela enxergue o que seria um caminho natural de ganho comparativo na guerra das quatro telas.

Do ponto de vista da mentalidade imperialista tradicional, mesmo com a derrocada do neoliberalismo, o esforço de renovação do cinema não o distingue da televisão, do computador e do celular em termos de transmissão ideológica. Enquanto algumas das grandes transnacionais de alimentos, de bebidas e de brinquedos anunciam que deixarão de dirigir suas campanhas publicitárias à criança, o cinema, como indústria de entretenimento, se presta ao papel de agente transmissor das mensagens sujas dessas mesmas corporações, ao dizer à meninada que bom mesmo é fast-food e que no final das contas quem está preparado para vencer é quem passa o dia todo aos cuidados dos videogames.

É o que se pode ver no filme “Um faz-de-conta que acontece”, divertida comédia na qual a determinação de desconstrução do discurso social da saudabilidade está bem explicitada, nas muitas cenas em que a personagem principal insiste em dar prazer aos seus sobrinhos oferecendo a eles tudo o que a mãe luta para negar. No fundo, no fundo, o filme mostra que o pai, que era decente e que cuidou dos filhos com leitura e momentos de aconchego familiar, fracassou nos negócios e na criação dos filhos, pois se viu obrigado a vender o patrimônio e a deixar o herdeiro no papel de babaca e nas mãos de um esperto investidor.

A filha desse milionário, dono de uma bem-sucedida cadeia de hotéis, faz as vezes da princesinha da era do supérfluo, do efêmero, do vazio, da fofoca. Perseguida constantemente pelos flashes dos paparazzi, na vida supostamente real ela seria um tipo Paris Hilton, socialite estadunidense que se tornou famosa, digamos, apenas por ser famosa e nada mais. Para completar, no final de “Um faz-de-conta que acontece”, quando a vitória da mediocridade se impõe sobre a sensatez, a lição de vingança, com os vencedores humilhando os derrotados, encerra a ideologia da meta contra a fantasia.

Na mesma linha de faz-de-conta que se torna realidade, o cinema apresentou no ano passado o filme “Encantada”, no qual, para se realizar em suas fantasias, a princesinha do conto de fadas cruza o tempo e chega a Nova Iorque, onde consegue um cartão de crédito e descobre o que é bom na vida, consumir. Ao lado do novo amor, o dono do cartão de crédito, ela esquece do príncipe do seu mundo mágico e o coitado aparece na fita com cara de bobão em uma terrível caricatura de que esse negócio de amar é lamentável.

Esse cinema bem feito, de grande produção e capacidade de transformar ideologia em entretenimento, tem recorrido ao velho “stop-motion” (técnica de gravação quadro a quadro para produzir a impressão de que os objetos estão em movimento) e à também velha técnica de visão tridimensional, para dizer mais do mesmo e com um agravante: na luta pela sobrevivência no jogo de alta competitividade das quatro telas, o limite ético das produções pode estar na fronteira dos seus efeitos especiais.

Na televisão, uma nova ocupação do que chamo de “globalization way of life”, em ironia ao “american way of life” (estilo de vida estadunidense) já está no ar e responde pelo nome de “live action” (ação de fato), expressão que vem das séries televisivas japonesas e agora chega em forma de pequenas novelas para vender comportamento precoce e estimular o consumo inconsequente de tudo o que não presta. Depois de assimilados esses conceitos ganham vida na vida de meninas e meninos e passam a se rebelar contra a consciência de saudabilidade que vem se formando na sociedade. Como muitos pais, mães e cuidadores, mesmo cientes de que uma nova educação se faz necessária, ainda enfrentam o desconforto das mudanças, filmes como “Um faz-de-conta que acontece” e “Encantada” servem para enfraquecê-los em suas convicções.

A gente às vezes pensa que a sociedade não é mais a que era. E certamente não é. Mudou, começou a perceber que está caminhando para a auto-destruição social e ambiental. Só que os responsáveis pelo mapa do abismo também mudaram; têm uma espécie de GPS para dar segurança de seguir o rumo tomado. Na física escolar, estudamos que se um objeto aumenta a velocidade, mas o seu plano de referência também segue a mesma velocidade, tudo parece parado. Desse ponto de vista, está tudo parado. A diferença é que agora quem quiser pode mover o fundo, o cenário e ver que a sociedade está se mexendo.

É a essa mobilidade do olhar que precisamos estar atentos quando nos deparamos com as quatro telas. O consumo do lixo cultural no cinema não é diferente da televisão, do computador e do celular. Até porque televisão, computador e celular, ao serem descartados, produzem um entulho de complexo tratamento. O “advocacy” da inclusão digital aproveita a falta de reflexão sobre o assunto em países com o Brasil, a China e a Índia, que estão mordendo a isca do destaque de “segundo mundo” para empurrar equipamentos eletrônicos usados, cheios de material tóxico, como mercúrio, chumbo e tricloroetileno, um solvente cancerígeno usado na fabricação de semicondutores. No cinema poderia ser diferente, mas lamentavelmente, a matriz ideológica é a mesma e, para não desaparecer, a indústria cinematográfica está dando a volta por baixo.