O colecionador de crépúsculos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 19 de Julho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Comecei a freqüentar o Cinema de Arte Universitário da Casa Amarela na segunda metade dos anos 1970, quando ainda era estudante da Escola Técnica Federal do Ceará (hoje Cefet). Guardo de recordação o permanente para as sessões, com a assinatura do irrequieto Eusélio Oliveira (1933 – 1991). Dos filmes que tive a oportunidade de assistir naquele espaço de formação, de debate e de desenvolvimento de percepção crítica, o documentário A Rede de Dormir (J. Siqueira) foi um dos que mais me impressionaram, pela força poética e plástica da sua narrativa em torno desse ícone herdado dos povos nativos do Brasil pré-colonial.

Lembro que fiquei muito interessado em conhecer outros trabalhos do diretor daquela obra-prima, mas não consegui saber muita coisa além do fato de que ele era pintor. O tempo passou e, certo dia, quase uma década depois, toquei no assunto em uma das rodas de conversa do sítio/museu do Estrigas e da Nice, no Mondubim. Foi quando soube com mais detalhes da sua importância para as artes plástica e para o cinema do Ceará. E, mais, como não havia notícia de que ele teria morrido, deveria, portanto, estar vivo, embora não tivéssemos informações de onde encontrá-lo.

Pela conjetura do Estrigas, Siqueira moraria no bairro do Monte Castelo. Com essa pista, iniciei uma busca persistente para localizá-lo. Por muitas semanas fui até a praça da igreja daquele bairro para, dali, sair indagando rua por rua, de casa em casa, se as pessoas conheciam João Maria Siqueira, o pintor, o cineasta… Se eu via alguém com idade mais avançada, não receava em perguntar. Até que um dia abordei em uma calçada um senhor ligeiramente calvo, com óculos de grau e um bigode esbranquiçado, combinando com o cabelo, e ele me disse que conhecia o Siqueira, sim. Dispô-se a me mostrar onde o artista morava. Era ele que, espirituosa e gentilmente, me convidava a ir a sua casa.

Fiz, então, uma entrevista com João Maria Siqueira e logo deduzi que o tempo investido em sua procura tinha sido muito proveitoso. Siqueira passava a simplicidade e a grandeza humana que eu tinha percebido no seu filme A Rede de Dormir. A matéria foi publicada em um domingo (O Povo, 14/12/1986) e logo no dia seguinte ele me ligou todo feliz. Queria me dar de presente a tela Os Comedores de Feijão, que estava terminando de pintar. Disse a ele que uma entrevista com alma é o maior presente que um repórter pode receber e que isso ele já tinha me dado. Dias depois chega para mim, na redação do jornal, um envelope com o storyboard do documentário O Colecionador de Crepúsculos, em papel timbrado do pintor Antônio Bandeira (1922 – 1967), com roteiro manuscrito e pequenos desenhos do próprio Bandeira e, na última página, um oferecimento do Siqueira para mim.

Ele havia me revelado a tristeza que o abatia por conta do sumiço desse filme, no qual ele gravara imagens do Bandeira “na oficina da Fundição Santa Isabel, que pertencia a seu pai [Sabino Bandeira], desenhando os operários carregando os cadinhos; na praia, ele jogando pedras com os meninos e em barcos”. Entendi que ao me passar aquele documento tão raro, Siqueira estava na verdade me pedindo socorro, me dando sutilmente a missão de ajudá-lo a localizar o filme. Aceitei a incumbência, embora, minhas diversas tentativas tenham sido frustradas. Resolvi, então, passar o documento para a guarda do Estrigas, afinal tinha sido no anticlube lírico do Mondubim que eu havia conseguido a dica que me levara a encontrar o próprio Siqueira. Esse roteiro ilustrado foi publicado por Estrigas no seu livro Bandeira – a permanência do pintor (Imprensa Universitária, 2001).

Sem perder a esperança, mas tendo há um bom tempo suspendido os esforços para encontrar O Colecionador de Crepúsculos, fui alegremente surpreendido na semana passada com dois telefonemas; um do cineasta Wolney Oliveira, filho do Eusélio, e outro do fotógrafo Francisco Bandeira, sobrinho do Antônio Bandeira, para me dizerem que o documentário foi encontrado e que está em boas condições. Pensei imediatamente no Siqueira (1917 – 1997) e em como gostaria de ter dado essa boa notícia para ele. Mas faço isso à sua memória. O filme, de 15 minutos, gravado em 16mm, mesmo tempo e formato do documentário A Rede de Dormir, estava felizmente preservado no acervo da Casa Amarela.

Com esse achado recuperamos um precioso patrimônio do nosso cinema e das nossas artes plásticas. Em uma só obra temos o Siqueira como pintor cineasta e o pintor Bandeira como protagonista. O Colecionador de Crepúsculos tem título emprestado de um texto de Milton Dias (1919 – 1983), no qual o cronista fala do primeiro alumbramento do menino Antônio Bandeira: “Surpreendeu o primeiro guache, um certo crepúsculo triste e lindo, como estes que costumam aparecer por cá no mês de junho, feitos dum tom violeta muito exclusivo, tirando pro vermelho, com raras manchas dum azul estranho. Daí por diante, toda tarde ficava espreitando o espetáculo e foi se tornando colecionador de crepúsculo”.

O filme de J. Siqueira dá permanência a esse momento tão expressivo da história da pintura moderna brasileira, ao registrar, com honesta cumplicidade, aspectos da genialidade de Bandeira, inspirados na força da luz e das cores do Ceará, em plena centrifugação inventiva, com as imagens abstratas e quentes do ferro e do bronze derretidos nos cadinhos da infância do artista. O designer Geraldo Jesuíno, sintetiza bem o mergulho de Antônio Bandeira nos mistérios da arte: “singular habilidade criativa e absoluta crença no futuro, o fizeram um artista, cuja obra desafia os modismos da época, firmando-se conteúdo e forma em contundente atualidade”.

Bandeira e Siqueira foram bons amigos e companheiros. Conta Estrigas que, em 1951, quando Antônio Bandeira retornou ao Ceará pela primeira vez, depois da mudança para Paris, logo após a Segunda Guerra Mundial, apoiou um grupo dissidente da Sociedade Cearense de Artes Plástica, SCAP, formado, dentre outros, por João Siqueira e Zenon Barreto, que ficou conhecido como Grupo dos Independentes. Divergência que logo depois foi contornada e todos voltaram aos ares do “ateliê coletivo” do Morro do Moinho, como era chamado o trecho, com excelente vista para o mar, que se estendia do Arraial Moura Brasil ao Jacarecanga.

A descoberta do documentário O Colecionador de Crepúsculos abre uma boa perspectiva de divulgação da vida e da obra de Siqueira e de Bandeira. Se estivessem vivos estariam comemorando este ano 90 e 85 anos respectivamente. Em se tratando de data redonda, 2007 é um ano especial, inclusive para quem gosta de festejar aniversário de morte, pois J. Siqueira morreu há uma década e Antônio Bandeira há 40 anos. O filme é uma das relíquias da nossa arte e ainda bem que está nas mãos realizadoras de Wolney Oliveira, que é o diretor da Casa Amarela, fundada pelo seu pai em 1971.

Francisco Bandeira, animado com a descoberta que mostra cenas notáveis do tio, espera que esse achado contribua para revigorar a imagem do pintor Antônio Bandeira, na perspectiva de vê-lo somado a outras peças semelhantes, como o documentário feito pelo pintor Flávio de Carvalho (1899 – 1973), intitulado Périphérie, gravado no subúrbio de São Paulo, com Antônio Bandeira e a atriz Maria Fernanda, filha mais nova da poeta Cecília Meireles (1901 – 1964). Wolney também acredita nessa possibilidade e está tentando localizar um suposto documentário intitulado Bandeira em Copacabana, que teria sido gravado no período em que o genial artista cearense morou no Rio de Janeiro. Que alegria de crepúsculo matutino. Faça-se a luz.