O comércio de cultura livre
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 09 de Julho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O anúncio da venda do Pirate Bay, um dos fornecedores de conteúdos mais acessados da rede mundial de computadores, clarifica bem o estado de contradições em que se encontram os novos modelos de negócios, montados a partir da estratégia de estímulo ao trabalho gratuito e ao lucro sem precisar de empregados.

A transação, que gira em torno de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais), passa o controle do portal para outra empresa sueca, a Global Gaming Factory X. O que está sendo vendido por esse valor bastante razoável é um sistema de localização e de cópia de arquivos de filmes, músicas e jogos eletrônicos, que podem ser capturados na internet.

A situação deve ser constrangedora para o Partido Pirata sueco, que tem uma cadeira no Parlamento Europeu conquistada pelo discurso da “cultura livre”. Uma das bandeiras desse partido político é a da liberação total de conteúdos, desde que não seja para fins comerciais.

Para ser coerente com a sua proposta, apoiada por um quarto dos eleitores jovens do seu país, o Partido Pirata deverá incluir na sua plataforma o combate à artimanha de alguns aproveitadores que estão montando negócios milionários, como Pirate Bay, se aproveitando da credulidade da juventude em seus anseios de participação e de democratização dos saberes e do conhecimento geral.

A utilização do discurso da “cultura livre” na criação de negócios lucrativos tem sido recorrente em produtos e serviços, muitos deles com valor elevado pelo ideário da liberdade e da redução da desigualdade. Vez por outra um cai em tentação e entrega o dilema existente entre o que defende em palavras e o que faz em atos.

Foi o caso, meses atrás, do produtor musical israelense Ophir Kutiel (Kutiman), que estruturou o ThruYou, um espaço na rede com clipes desenvolvidos com base em vídeos de compositores amadores, que postam suas imagens no YouTube, tomando-o como diário virtual.

O drama de Kutiman não foi causado pelo fato de ele ter se apropriado das músicas disponibilizadas para fazer mesclas, já que não há qualquer restrição a uso não comercial do que circula em espaços públicos físicos ou virtuais. O que deixou o produtor em situação de vacilo foi o recebimento de propostas de comercialização do sampler que ele fez.

No mundo das grandes empresas de venda de conteúdos esse dilema começa a ser superado com posturas menos dissimuladas. Embora ainda cheias de lábias do espírito colaborativo, corporações como a Google estão tratando a questão com mais prudência.

A mais recente investida do maior buscador eletrônico do mercado mundial foi a de oferecer a oportunidade de exposição de obras de artes plásticas e gráficas no seu navegador para milhões e milhões de internautas, desde que não precisasse pagar pelo uso dos trabalhos a serem exibidos.

Artistas e designers de vários lugares do mundo disseram não ao departamento comercial da Google. E disseram não, simplesmente argumentando que não tem sentido trabalhar de graça para uma transnacional que fatura bilhões vendendo conteúdo, ainda que o acesso das pessoas pareça grátis.

Está comprovado que uma das idiossincrasias que levou o mito do neoliberalismo ao suicídio foi a exploração insustentável de mão de obra barata em plantas industriais (footprint) espalhadas nos países periféricos, o que gerou desequilíbrio de emprego nos países centrais.

A construção do pós-neoliberalismo vem se pautando pela tecedura de um sistema mais sofisticado de exploração do trabalho. Sai da mão de obra semi-escrava para a mão de obra voluntária, ou seja, sai da relação antipática e condenável da exploração desumana para a relação simpática e adesista da colaboração, movida por valores supostamente humanistas.

Sempre que falo dessa crueldade praticada pelos gurus dessa lógica que leva muitos a trabalhar em favor do ganho de alguns poucos, a minha posição tende a ser interpretada como se fosse contrária à internet, à tecnologia, enfim, aos meios, quando não estou tratando dos meios. O que ponho em questão nessas circunstâncias é o egoísmo social que ameaça nos tirar a oportunidade de evitar que se perpetue a astúcia dos lobos que se vestem com pele de cordeiro.

Os novos intermediários do mercado de conteúdos estão sofismando quando apelam para o inconformismo de uma sociedade, sobretudo da juventude, que está em crise de significados, à procura de si mesma para ver se consegue descobrir o outro, e a mobiliza com apologia à cultura livre, à liberdade de expressão e ao senso de que o compartilhamento da cultura do mundo depende apenas da abdicação de direitos por parte dos autores.

Os instrumentos de comunicação disponíveis nos dão possibilidades reais de criação de condições para termos uma vida cultural decente. Essas condições podem ser construídas no hiato deixado pelo estouro das bolhas ambientais, sociais, econômicas, geopolíticas e dos esforços de hegemonização cultural, que nos fizeram chegar ao impasse civilizatório dos dias atuais.

Não há como pensar em cultura livre, como dádiva da economia. Para existir cultura livre de fato, as atividades econômicas voltadas para a cultura deveriam derivar dos interesses culturais e sua influência nas narrativas transmidiáticas. Somente a troca direta de conteúdos, sem atravessadores, valorizará a grande conquista que a internet representa e possibilitará uma acessibilidade real no diálogo intercultural.

O alcance dos diferentes domínios da cultura livre ocorrerá quando formos capazes de traçar alternativas concretas para a sua prática, que poderia ter como nodos a existência de navegadores públicos. Antes, porém, seria indispensável um amplo debate sobre o que realmente significa cultura livre, de modo que se pudesse produzir um entendimento simultaneamente aprofundado e claro sobre o assunto.

A cultura livre requer uma mentalidade relacional crítica, redealizada e comunitarizada, que vai além dos parâmetros do software livre. Mesmo reconhecendo o enorme valor das conquistas do software livre e a sua problematização como emancipação social, não dá para aplicar a mesma solução no mundo da arte e da cultura porque este mundo está intimamente vinculado a um exercício dialógico, até que o discurso se torne consciente de si.

Este é um enunciado do nosso tempo e convém assumi-lo sem reducionismos. Encontrar caminhos compatíveis com a magnitude da oportunidade é uma obrigação de quem deseja e luta pela construção de um novo estilo de vida, menos dependente da esperteza, da aparência e de toda e qualquer sanha destrutiva da natureza e das relações humanas.

O momento é de transição. Deixar escapar a chance de contribuir para efetuar inflexões nas estruturas que já comprovaram total descompromisso com a experiência humana me parece uma estupidez. E uma das movimentações em curso, que tem tudo para influir positivamente para essa transformação, é a saída do fissurado paradigma econômico para a formação de consistentes paradigmas culturais.

Na democratização da cultura está o espaço mais efusivo para a vivência da liberdade. Por isso, fica difícil pensar em cultura livre à sombra de um debate dominado pelo conflito de dois sistemas comerciais de produtos e serviços culturais. Pode ser que a sequência dos acontecimentos, a exemplo da venda do Pirate Bay, da tentação de Kutiman e das manobras do Google, acabe servindo para nos despertar à co-responsabilidade que temos com as consequências dos nossos atos e omissões.