O estaleiro do Titanzinho
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 04 de Fevereiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Pelo traçado litorâneo de Fortaleza, o bairro do Serviluz fica localizado entre o Porto do Mucuripe e a parte mais antiga da Praia do Futuro. É um bairro escondido e relativamente novo, embora seja conhecido como berço do surf no Ceará, por conta da praia do Titanzinho, e abrigue o velho farol, construído em meados do século XIX, onde funciona um precário museu com referências históricas da cidade.

O Serviluz é um bairro de muitas histórias em seu pouco mais de meio século. Formou-se a partir da aglomeração de pessoas que se deslocaram dos subúrbios de Fortaleza e do interior do Estado, em função da construção do Porto do Mucuripe. Ganhou adensamento populacional também com a instalação das termelétricas do Serviço de Luz e Força de Fortaleza, Serviluz, que deu nome à comunidade, e a implantação do terminal de tancagem de combustíveis.

A situação social e econômica do Serviluz é muito vulnerável, em decorrência do caráter multifacetado da resultante histórica que se evidencia no seu tecido de vida cotidiana. Habitado por famílias de trabalhadores da zona portuária, pescadores, desocupados e desempregados, o lugar é marcado pela violência, pela prostituição, pelo tráfico de drogas e pela presença de diversos projetos de organizações sociais, religiosas e comerciais. O bairro caracteriza-se como de baixa renda e tem problemas estruturais críticos, como a falta de esgotamento sanitário.

Com a constatação de que a praia do Titanzinho é o lugar mais viável para a construção de um grande estaleiro no litoral cearense, em termos de investimento e de tempo de implantação, cabe aos poderes competentes e às organizações sociais analisar a melhor forma de aproveitamento desse empreendimento para o Ceará, para Fortaleza e, óbvio, para os moradores da área diretamente afetada. A participação das pessoas do bairro seria enriquecida se a discussão estivesse apoiada nas dimensões do emprego, da renda, da urbanização, do meio ambiente, do lazer e da diversão, ao invés de arengas de perde-perde.

É natural que as comunidades tenham receio de que aconteça algo de ruim em suas vidas, quando deparadas com esse tipo de intervenção. E muitas vezes os conflitos por interesses territoriais instigam o pesadelo fantasmagórico da impotência cidadã. Mas acredito que o governador Cid Gomes está empenhado tanto na atração do investimento quanto no cuidado com a melhoria da qualidade de vida de quem mora no Serviluz.

Escolhas desse tipo, para serem ágeis e certeiras, necessitam que a cidade tenha uma estratégia de longo prazo e um conceito de sentido urbano, o que lamentavelmente não é o caso. Como mais do que arroubos vaidosos, Fortaleza requer soluções concretas ao seu desenvolvimento, a pior situação é reduzir a importância do tema a disputas políticas entre a prefeitura, o estado e as entidades de alvos populares instaladas no bairro. É muito complicado tratar um assunto dessa relevância com base na prevalência de quem grita mais alto.

A razão da polêmica em torno da possibilidade de construção do estaleiro do Titanzinho foge ao plano da realidade objetiva. Expressa uma situação paradigmática que merece reflexões e debates para além do caso em si. Não fazer e não querer deixar que os outros façam é uma posição que tem sido adotada por setores da esfera pública e privada, que, via de regra, lançam mão de ressentimentos, emoções raivosas e da ideologia vazia das palavras de ordem, sem repercussão positiva de caráter prático na vida das pessoas.

Como manifestação social do olhar, o caso do estaleiro aponta para uma curiosa movimentação de instrumentos de poder na cadeia do controle comunitário. Mais do que um zelo com o que a construção pode ou não alterar no cotidiano do Serviluz, o falatório inflamado mais parece uma tentativa de manipulação dos impulsos autênticos da vontade dos moradores, como se o comportamento das pessoas em um espaço culturalmente tão heterogêneo tivesse uniformidade e fosse passível de um nivelamento de aspirações.

A dificuldade de sairmos da abordagem inventariante das desigualdades sociais, sim, me parece grave; a construção do estaleiro, não necessariamente. Precisamos ampliar o nosso horizonte de quereres e esticar a perspectiva dos fazeres; dar chance à realidade e não apenas ficar ruminando intenções vagas, para que a cidadania encorpe e as pessoas possam fazer opções integrativas, livres dos condicionamentos invasivos.

A construção do estaleiro do Titanzinho, infelizmente apaga uma pequena praia, parte de pedra, parte de areia, mas vai influir para a reconfiguração do bairro, possibilitando o surgimento de novas dinâmicas de sociabilidade. Evidentemente que a praia cedida precisa ser compensada por outra área apropriada ao lazer da juventude. Essa redefinição da trama física, econômica e cultural cria um novo ambiente de relações, com novos laços, que certamente resultarão em novas subjetividades e na alteração positiva do panorama geral do bairro.

Os argumentos de que um estaleiro é um equipamento feio não têm força neste caso, pois, vista da cidade, a estrutura naval não estará em um plano de frente e, observada de dentro do mar, a silhueta dos guindastes, das máquinas e dos navios comporão um articulado conjunto de referências com o Porto do Mucuripe, que contribuirão para simbolizar uma presença econômica que se une à economia do turismo, dando a Fortaleza um ar substancialmente metropolitano.

Pelo que está posto nas páginas dos jornais, nota-se que a construção do estaleiro no Titanzinho será benéfica para o Serviluz: a) ao invés de remoção das famílias que moram no bairro o governo mostra-se disposto a fazer uma dobradinha com a prefeitura em um projeto habitacional; b) o mundo da lendária surfista Tita Tavares terá apoio do Estado; c) trata-se de indústria sem chaminés; d) o transporte das chapas de aço será feito pelo mar e não pelas ruas da cidade; e) haverá capacitação de gente do local para trabalhar na obra e na indústria; f) não entra em choque com o Plano Diretor da Fortaleza, por se tratar de área criada; g) a praia do Titanzinho apresenta condições ideais de profundidade e localização que reduzem o investimento a um quinto, comparando, por exemplo, com o Porto do Pecém; h) o investidor quer começar logo e a primeira encomenda de oito navios de transporte de gás liquefeito está em vias de ser homologada pela Transpetro.

O estaleiro Promar Ceará terá o Estado como sócio em uma engenharia acionária que converterá, ao poder público, ações proporcionais à metade do valor investido em infraestrutura. Não temos todo o tempo do mundo para decidirmos se queremos ou não entrar no jogo. A fila anda e o jogo não é só de construção e reparos de navios. Com o advento do pré-sal – a grande reserva de petróleo descoberta pela Petrobrás na costa brasileira – o estaleiro do Ceará passará a fabricar também equipamentos para plataformas e a atender outras demandas que surgirão com o novo posicionamento econômico e político do Brasil no mundo.

A construção do estaleiro ligará duas pontas de uma mesma história; a história de uma comunidade que nasceu por conta da construção então polêmica do Porto do Mucuripe e que poderá se reinventar a partir da construção também polêmica do estaleiro do Titanzinho. Que prevaleça a lucidez, o senso de oportunidade da necessidade e da contingência e a visão de quem tem a coragem de olhar para frente e para longe, como é comum ao povo do mar.