O hip hop e a estética dos excluídos
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Domingo, 07 de Março de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Como se pudesse sintetizar o espírito de uma época, a globalização garantiu mercado, matéria-prima e mão-de-obra barata para as grandes potências e decretou a universalização da exclusão social. Amplia-se o inchaço da grande maioria, que vai ficando mais e mais fora do plano da perversa minoria detentora do controle econômico-financeiro, intelectual, político, das armas e da difusão cultural. Nesse contexto, o hip hop surge como um movimento que suscita a visão dos apartados, chamando a atenção e negando o estranho consenso de que a pobreza é um mal de origem.

No Bronx, periferia de Nova Iorque, em Freetown, na Serra Leoa, na cidade satélite brasiliense da Ceilândia ou na Baixada Fluminense, zona norte do Rio de Janeiro, a condição de quem está fora do jogo apresenta semelhanças assustadoras. A realidade dos subúrbios com suas péssimas condições sanitárias, seus elevados índices de analfabetismo, desemprego e uma completa ausência de perspectivas pelas vias formais, criou mecanismos informais de sobrevivência.

Desses instrumentos de fuga para a vida marginal, o hip hop talvez seja o mais consistente, por estar respaldado em uma estética com criatividade, originalidade e autonomia artística bem definida. Quem participa do movimento, pode experimentar uma espécie de liberdade condicional permitida pela arte. Nele, a mistura de elementos da dança (break), da pintura (grafite), da poesia falada (rap) e um guarda-roupas casual, forjado pela falta de grana, procura resolver a diferença com atitude. É a periferia apresentando o seu estilo, seus conceitos, sua linguagem.

O conjunto de expressões culturais, originário da força e inventividade negra, latina e caribenha nas periferias das metrópoles norte-americanas, no final dos anos 70, ganhou novas roupagens ao ser incorporado a outros cotidianos urbanos. O incidente étnico, político e econômico entrou em processo de miscigenação e mudou o paradigma para incluídos e excluídos. A fase ainda é de conexão e demonstra descompassos entre muitas rixas e sentimentos confusos. De qualquer maneira, são diversas tendências abrigadas no mesmo propósito de ser sujeito. Este, sim, o principal motivo da rebelião.

O paradoxo oscila entre paz e tumulto, numa verdadeira guerra endêmica. Uns combatem o racismo com racismo, pregam o ódio à autoridade e a indiferença em relação ao mundo. Outros limitam-se à ética das gangues, com sua lealdade letal, sua defesa de território, seu orgulho irracional e seu suposto poder de proteção. Há os que tentam mostrar que a perifeira não é só pobreza e violência, tem diversão, amizade e muita gente boa pelas ruas e pelos bailes. A impressão que dá é de que, para unificar o alvo dessa comburente manifestação, só está faltando surgir um líder carismático do tipo Nelson Mandela para, como ocorreu na África do Sul, ajudar a eleger uns seis artigos para a desobediência civil e subverter a lógica dos “brancos”.

Nas “posses”, como são chamadas as associações de compositores, DJs, grafiteiros e dançarinos do hip hop, a claustrofobia social se legitima como cultura popular. Se Patativa do Assaré nascesse hoje em uma periferia urbana, ninguém duvide que ele seria um rapper. Rap vem de ritmo e poesia (Rhytm And Poetry) e a sigla MC (Master of Ceremony) tão utilizada no meio, não é nada mais, nada menos, do que mestre de cerimônia da poesia falada. Daí, não importa se o excluído é índio, japonês, nordestino ou negro, o gesto sedutor da narrativa embala o desejo de sobreviver.

Da mesma forma que os violeiros, os cordelistas e emboladores só precisavam da feira para cultivar sua arte, os artistas do hip hop dispensam academias de dança para fazer suas acrobacias e passos de luta; cursos de artes plásticas, para fazer arte pop contemporânea; aulas no conservatório, para manipular equipamentos eletrônicos a partir de bases pré-gravadas e dicas de estilistas, para usar surradas jaquetas que, acima de tudo, combinem com o clima underground. Se bem que, com o aparecimento de DJs e produtores disposto a massificar o movimento, a explosão atingiu em cheio a classe média e muita coisa mudou. O hip hop, que até bem pouco tempo nem era considerado forma musical autêntica, chega ao olimpo da música pop internacional. Não é à toa que a principal ganhadora do Grammy de 1999, é a rapper Lauryn Hill. O mercado norte-americano de discos, que é o maior do mundo, registrou como fatia do hip hop 11% (onze por cento) de suas vendas no ano passado.

A onda de popularização dessa estética, atingiu os comerciais de tevê, o cinema, o rádio, as casas de show, as capas de revistas, os jornais, as teses acadêmicas e o walkman da juventude herdeira da concentracão de renda. No Brasil, o fato dos Racionais MCs terem ultrapassado a vendagem de meio milhão de cópias, sem divulgação formal, obrigou a mídia nacional a reconhecer o poder do hip hop, fortalecendo o debate político da exclusão. Embora com discurso sempre marcado por visões apocalípticas e telúricas, o rap glorifica o fim da apartação. Tenso, em clima de festa ou dolente, seu conteúdo revela fecundas contradições, ao reproduzir atração por valores contestados, tais como “mulher só vale pelo sexo que tem” e “dinheiro com carro de luxo é símbolo de felicidade”, ao mesmo tempo em que pede socorro e protesta nas suas pequenas histórias de droga, polícia, fome e tantas outras injustiças e desequilíbrios sociais.

O certo é que o hip hop reúne um conjunto de códigos de posturas sociais que merece muita atenção por ser inovador, revolucionário e por sinalizar uma esperança de incômodo concreto à elite de rapina que, em nome da estupidez do poder, da ganância e do individualismo, destroça levianamente a fauna, a flora e os princípios de humanidade que ainda restam no planeta. Esse “suor positivo” (que, dizem, significa o termo funk) não poreja em vão. Vai dar em alguma coisa mais. Difícil imaginar como essa química social reagirá aos ditames da indústria cultural. Tem rap pesado, romântico, dançante, bem humorado, enraivecedor, ideológico e simplesmente comercial. Tem rap para tudo. Mas ainda não tem lugar no mundo para os habitantes dos guetos de onde vem o rap.