O IBGE e a cultura dos municípios
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 04 de Outubro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, que vem sendo divulgada nos últimos dias, produziu uma certa perplexidade acabrunhada no meio cultural, ao revelar que 84,6% dos municípios brasileiros não dispõem de órgãos exclusivos para gerir o setor. Fiz a conta pelo avesso e fiquei feliz ao saber que já temos 15,4% dos 5.564 municípios com secretaria ou fundação para cuidar especificamente do assunto. Isso quer dizer que temos mais de 850 prefeituras com estruturas de cultura funcionando.

A esses números em si não cabem lamentações, o que não quer dizer que devamos nos acomodar com o pouco ou muito conquistado. Antes de partirmos para ficar ou não impressionados com o lado estatístico da discussão deveríamos parar um pouco para pensar o que é mesmo que tudo isso significa. A questão de fundo é se deveríamos ter desvinculado a cultura da educação. Acho que essa separação causou mais danos do que benefícios ao País. Com a saída da cultura do âmbito da educação, o sistema educacional brasileiro ficou refém dos oligopólios da indústria cultural e as escolas públicas e privadas passaram a ser vistas apenas como disputados pontos de venda.

Desprovida da força complementar da cultura, a educação inclinou-se ao vale-tudo do mercado. A revista Carta Capital nº 464, que está em circulação, traz uma reportagem que ilustra bem o que tem acontecido no mercado público de livros didáticos, um mercado que em 2007 alcançou a cifra de 560 milhões de reais. A matéria mostra como o deputado federal Paulo Renato montou uma consultoria que levou a multinacional espanhola Santillana a ultrapassar o Grupo Abril em vendas para o Plano Nacional do Livro Didático, PNLD. Renato era ministro da Educação do governo FHC e a então presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Mônica Messenberg, é a atual executiva do grupo espanhol que ele tem como cliente.

O fato é que separamos os ministérios e precisamos entender melhor o que fazer com isso. Desde 1985, quando o Ministério da Cultura, MinC, foi criado, aos dias atuais, passaram-se 22 anos e por ele passaram 11 ministros; um a cada dois anos, em média. A descontinuidade nessa área é mais grave do que nas demais porque afeta o que uma sociedade tem de mais valioso, que é o que ela é e o que a distingue no diálogo cada vez mais planetário. O ministro Gilberto Gil tem sido uma das exceções, tanto em tempo de permanência no cargo, quanto por ser alguém capaz de liderar um processo de aproximação do Estado e da sociedade na construção de políticas públicas de cultura, como um direito social básico. O nosso Sistema de Informações e Indicadores Culturais vem sendo aperfeiçoado desde 2003, com números e percentuais que dão a dimensão econômica da cultura brasileira.

Pode-se dizer que o Brasil já tem uma política cultural com fundamentos bem elaborados e concatenados em um sistema que permeia os estados e os municípios. É diante desse quadro que me vejo otimista com os números mostrados pelo IBGE. Se ao invés de ficarmos realçando o que não temos, passarmos a potencializar o que temos, aumentaremos as chances de contribuirmos para a ampliação do percentual de municípios interessados em usufruir dos benefícios sociais e econômicos oferecidos pela cultura. Há ainda muito o que ser depurado nesse processo, como é o caso das cerca de 300 mil empresas culturais existentes no País, das quais uma quantidade relevante forma uma malha de atravessadores que retém muito dos recursos destinados ao fomento cultural.

A pesquisa do IBGE desnuda que em 6,1% dos municípios a cultura está associada ao gabinete do prefeito e tem como finalidade cuidar dos eventos que promovem a imagem do executivo municipal. É pouco, não devemos nos estressar com isso. Dia e mais dia essa gente vai se dar contar de que as pessoas estão percebendo esse uso indevido e mudarão ou serão mudadas. No ritmo que vai, o Brasil tende a avançar na valorização da sua cultura. Mesmo com toda a capacidade criativa da nação brasileira, precisamos entender que a agenda da busca de respostas para a tomada de medidas de integração social permanece preferencialmente atrelada ao paradigma econômico e político.

Ver o que há de ser feito com bons olhos não quer dizer ignorar o cenário de grandes desafios que temos a superar. O reordenamento da nossa estrutura social passou a ser feito no local, o que é um avanço, mas, ao mesmo tempo, mantém as diretrizes de cima para baixo, o que é um atraso. Alterou-se o desenho e até as regras do trato das questões locais, porém as peças do tabuleiro são as mesmas. Os municípios passaram a assumir papéis mais relevantes e precisam conquistar mais altivez cultural para promover o bem-estar das comunidades que o constituem.

Neste aspecto a articulação por meio de redes de forças políticas em municípios com afinidades culturais, parece um caminho capaz de levar os povos ao exercício menos injusto do poder. Mesmo essas redes tendem a se tornar dependentes dos governos municipais. Existe uma dificuldade histórica de descolarmos o poder cultural do poder das autoridades partidárias. O grande avanço a ser dado nesse sentido está no aprendizado do fazer com o município e não para o município. As redes culturais de integração precisariam de autonomia para influenciar o tipo de governo que querem e não o contrário, como tem sido a regra.

Pelo viés da cultura o poder perde a referência material e institucional – sedimentada por imposições religiosas, econômicas, bélicas e políticas – para ser o que realmente é: apenas o resultado de atitudes entre as pessoas e os povos. Inspirado na cultura, o poder comunitário passaria a ser exercido por valores, desejos e necessidades organizados no plano simbólico. O auto-reconhecimento, o sentido de pertencimento, a valorização da ancestralidade, o sentido de destino, são pequenos poderes dispersos. Essa ausência de percepção leva a sociedade a não sentir claramente, nem a acreditar no poder que têm. Isso vulnerabiliza o poder cultural local e leva as pessoas a se submeterem aos que se apropriam da idéia de poder calcada em variáveis de superioridade e inferioridade.

Os dados apresentados pela pesquisa do IBGE são de grande relevância e servem para balizar o processo. Entretanto, mais do que qualquer perplexidade com o número de secretarias ou fundações de cultura existentes no País, não devemos esquecer de querer saber qual a razão delas existirem. O conceito de políticas públicas, que vem da ciência política e, em linhas gerais, ocupa-se das ações das autoridades públicas que influenciam a vida das pessoas, ao ser trabalhado no âmbito da cultura deve levar mais especificamente em consideração as ações das esferas públicas medidas pelo uso do conhecimento social. Assim, a melhoria das condições de gestão da cultura por parte dos beneficiários torna-se mais importante do que a forma como a área é estruturada nos órgãos oficiais.

As regras do jogo da concentração de riqueza e de poder, geradoras das desigualdades, somente serão alteradas quando houver prevalência da memória, da história, da arte e da cultura conduzindo os motivos relativos à paz, segurança, liberdade, consumo e bem-estar coletivo.