O inimigo comum da infância
Artigo publicado no Jornal do Brasil, Opinião, página 6

Quinta-feira, 06 de Abril de 2006 – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Artigo em PDF

Antes de ser psicóloga, Susan Linn era ventríloqua e trabalhava com fantoches na televisão anglo-americana. Professora de psiquiatria na Escola Médica de Harvard, diretora de um centro de mídia infantil em Boston e co-fundadora da Coalizão pelo Fim da Exploração Comercial Infantil, ela ficou conhecida por seu trabalho no uso de bonecos de mamulengo como ferramentas terapêuticas para crianças. Há pouco mais de uma década lançou nos Estados Unidos um estudo detalhado do chamado mercado infantil, passando a ser uma destacada ativista contra os efeitos do marketing em crianças e adolescentes.

O livro de Susan, intitulado “Crianças do Consumo – a infância roubada”, foi lançado no Brasil na quarta-feira passada (29/3) no Sesc-São Paulo, encerrando a programação do 1º Fórum Internacional Criança & Consumo, realizado pelo Instituto Alana, com apoio do Sesc e do Itaú Cultural. Na ocasião, ela confessou que resolveu abraçar deliberadamente essa causa quando as ações de marketing perderam totalmente a noção ética e começaram a avançar sobre os bebês com a produção de vídeos supostamente educativos com telas direcionadas a recém-nascidos. A esse motivo de indignação somou-se a descoberta de que bonequinhos charmosos como os Teletubbies eram vendidos inicialmente pelos ingleses como produto educacional, quando a bem da verdade não passavam de meras ferramentas de estímulo ao consumo infantil.

E vieram o Bob Esponja, a Turma do Bairro e tantos outros personagens, criados para entrar na vida das crianças, em nome do consumismo, não importando o quanto os produtos ou serviços que assinam possam afetar a saúde, provocar desvios de instrução, inibição da criatividade e a desconstrução de valores sociais e culturais. As inteligências de marketing perceberam que a credulidade das crianças, somada á vulnerabilidade dos pais – que normalmente sentem algum tipo de remorso compensatório por ausências involuntárias ou não – e a dificuldade da escola em se ajustar ao ritmo e características do mundo contemporâneo, geraram as condições ideais para a concentração de foco em um segmento de mercado capaz de suportar categorias de produtos que vão de brinquedos ao fast-food.

O certo é que por trás dos bombardeios da erotização precoce, dos olhares desviantes concernentes ao corpo, da banalização da violência e da incitação à esperteza, existe uma indústria mundial que fatura US$ 15 bilhões anualmente. “Eles trabalham 24 horas por dia para solapar a autoridade dos pais, encorajando e fornecendo argumentos às crianças para isso”. Susan realça ainda o fato de muitos programas infantis apresentarem os adultos como seres maldosos e estúpidos, sem o menor compromisso com a compreensão de que para se desenvolverem com equilíbrio as crianças precisam se sentir seguras e para isso é fundamental o sentimento de consideração aos adultos.

Adepta do juízo de que a boa brincadeira depende cerca de 90% da criança e apenas 10% do brinquedo, Susan advoga que é preciso dar um basta nos exageros de marketing que inverteram essa situação. Revela que a sofisticação da sedução, da persuasão e do assédio mercadológico à infância já produziu nos Estados Unidos um sem-número de soluções consumistas que sequer chegaram ao Brasil. Uma das mais graves investidas nesse sentido é conhecida como marketing viral. Para essa técnica as empresas utilizam-se de instrumentos estatísticos nos quais se baseiam para enviar produtos a crianças que, por sua vez, passam a ser promotoras de venda “espontâneas” em um boca-a-boca que surte surpreendentes resultados comerciais, mas que tem provocado graves problemas nas relações entre as pessoas: “Já não se consegue mais distinguir se a sugestão de um amigo é honesta ou se é apenas uma dica orientada pela indústria do consumo”, denuncia Susan.

A gravidade da questão é imensurável e tende a piorar. Por se tratar de um problema de dimensões sócio-político e cultural, Susan acredita que só há um caminho para o contra-ataque, que é a ampla mobilização social. Uma mobilização de direito e liberdade: “Direito das crianças de crescerem livres dos abusos da publicidade, da propaganda e da promoção de venda; e liberdade dos pais e professores de poderem educá-las para a vida”. Como seria muito disperso tentar atingir os inúmeros segmentos indústrias que patrocinam esse desmonte, ela recomenda que a sociedade escolha a indústria do marketing consumista como o inimigo comum da infância. Sabe que não é uma luta fácil, mas não sem esperanças.