O Papa e a igreja de cima para baixo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 29 de Março de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O Vaticano não é a Igreja. O palácio do Papa é o centro administrativo da imensa comunidade de cristãos fundada por São Paulo (4 d.C – 64 d.C) tempos depois da ascensão de Jesus, há mais de dois mil anos. O Papa não é Deus. O Pontífice Católico é o chefe do Vaticano, escolhido pelos interesses de um colegiado de cardeais da cúria romana. É dessa compreensão que devemos partir ao avaliar os posicionamentos da cúpula da Igreja. Sei que religião não é um tema de unanimidade. Todavia, a importância da relação entre Igreja e sociedade impõe a exploração do tema na extensão possível.

Aproxima-se a data da V Conferência do Espiscopado Latinoamericano e Caribenho, a ser realizada em maio deste ano em Aparecida, São Paulo. Não por coincidência, a Congregação da Doutrina da Fé, do Vaticano, antecipa o tom do encontro por meio da repreensão pública, feita no dia 14/3/2007, ao teólogo salvadorenho Jon Sobrino, que é um dos idealizadores da Teologia da Libertação, conjunto de fundamentos que trata a religião dentro de uma perspectiva sócio-analítica do mundo.

A advertência ao teólogo baseia-se na interpretação de que o componente histórico com o qual Sobrino procura aproximar fé e cotidiano é identificado pelo Vaticano como redutor da divindade de Jesus. Ao patrocinar essa decisão o papa Benedito XVI manifesta sua negação a uma ação pastoral capaz de contribuir para que as pessoas cheguem até Jesus e não necessariamente o contrário, como foi feito em todo o processo colonial no continente ibero-americano.

Jon Sobrino integra o grupo de teólogos insurgentes da Igreja d’aquém-mar, que se distanciou do establisment para pensar em Deus a partir das pessoas e não dos conceitos que O amarraram no tempo. A opção pela desconstrução do senso de aceitação das desigualdades é um processo político de conquista da liberdade, que se contrapõe aos desígnios do Vaticano, que a considera perigosa para os fiéis.

O maior e mais simbólico de todos os princípios fundantes do cristianismo é a condescendência divina de reconhecer as pessoas como a Sua imagem e semelhança. Esse é o princípio que identifica Deus dentro de cada um de nós. A força dessa afirmação incomoda, pois leva a sedimentar no dia-a-dia humano a plataforma de esperança para o que é celestial. A sinalização do Vaticano sugere que os cardeais não aceitam essa rede teológica mestiça que procura divinizar o homem na busca de Jesus sem perder de vista o entendimento do seu percurso histórico.

A posição negativa da Congregação da Doutrina da Fé, com relação à humanidade de Jesus, está respaldada pela exortação apostólica “Sacramentum Caritatis” (Sacramento da Caridade), datada de 2/2/2007, mas só divulgada na semana passada. Com esse chamamento, Benedito XVI pretende resgatar as regras instituidoras da Igreja Católica diante do que seria a vulgarização dos ritos religiosos, dando mais relevância ao sagrado e dinamizando a influência eucarística no conturbado cenário atual. A exortação do Papa não deve, contudo, ser entendida apenas pelo que explicita, mas, principalmente, pelo sentido implícito que carrega em sua interpretação da Igreja no maior reduto católico do mundo, onde o caminho da interregionalidade leva ao ecumenismo.

O comunicado do Papa reforça uma visão de primazia dotada de lenitivos simbólicos. Se na concepção européia da Igreja, caridade significa a identificação com o amor de Deus na busca efetiva do bem ao próximo, no mundo colonizado, o reforço a esse conceito aprofunda o fosso entre infortunados e privilegiados pela distinção de carentes e dadivosos. Desta forma, a exortação beneditiana pode ser entendida como uma mensagem que dá autoridade aos beneficiados pelas tantas desigualdades a continuarem corruptos, cínicos, concentadores de riqueza e anti-éticos, desde que demonstrem que são socialmente responsáveis em ações caritativas.

Benedito XVI vai mais longe em sua exortação. Ele tenta valorizar a família pelo realce dos desencontros e não por valores de coesão. Aposta na infelicidade para produzir seu discurso de harmonia. Em contrapartida, a adoção do latim e do Canto Gregoriano em partes específicas das missas poderá ter um aspecto altamente positivo, se for para atender a um caráter de reforço estético à evangelização. São peças sagradas da história da Igreja que merecem ser expostas, como relíquias de um museu de religiosidade, lado a lado com as expressões culturais das comunidades.

A arte é um bom e comprovado elemento litúrgico. A idéia de Benedito XVI só precisa ser acrescida de um espírito de reciprocidade entre o formal e o popular para ser inovadora. Não cabe esperar que esse tipo de concessão parta do Vaticano com o seu reducionismo de fé, já que o Papa representa uma igreja com mentalidade de cima para baixo, na qual a representação de Deus se impõe aos fiéis e não uma igreja que parte do cotidiano para o divino.

Quando as autoridades eclesiásticas entram no varejo comportamental e ficam prejudicando a saúde pública com restrições morais aos governos que defendem a distribuição de preservativos ou quando reduzem a questão do segundo casamento à mera condição de praga social, estão prestando um desserviço público e traindo o sentido mais elevado da religiosidade, que é divinizar a vida. Assim, o discurso papal exige o que não será cumprido, o que acaba estimulando a perpetuação da hipocrisia. O tamanho do dogma deve suportar o espírito que veste.

A origem da Igreja tem um grande exemplo não explorado de mudança de ponto de vista sobre a realidade, que é a própria conversão de São Paulo. O Santo, autor e organizador de mais da metade dos livros do Novo Testamento, começou seu ativismo religioso perseguindo os chamados hereges, que eram os seguidores de Jesus. Depois de uma visão, que o colocou frente a frente com o Filho de Deus, é que ele se converteu.

São Paulo defendia que as pessoas não poderiam alcançar a salvação tentando seguir apenas as regras bíblicas, mas por meio da aceitação de Cristo (Romanos 5: 12-19). Apesar de formulador de rígidas leis bíblicas ele demonstrava a clareza de que para chegar a Deus o caminho não era o da obediência irrestrita aos preceitos dos dignitários eclesiásticos. Embora, dentro da compreensão do seu tempo, Paulo tenha defendido a resignação e o silêncio da mulher, ele realça que se as viúvas não estivessem conseguindo se conter, que se casassem novamente, “porque é melhor casar-se do que se abrasar no fogo da torpeza” (I Coríntios 7: 8-9). Nota-se nesse consentimento uma manifestação de busca da compreensão da natureza humana, não encontrada vinte séculos depois em Benedito XVI.

Sabemos que é grave a crise de valores desencadeada pelo consumismo e pela exacerbação da esperteza na atualidade, porém não é se distanciando das pessoas que as religiões cumprirão o seu papel. Para cada nova realidade não se faz necessário uma nova religião, mas, sim, um tratamento novo às questões vitais para o equilíbrio e a elevação da alma. É necessário que a fé seja pensada a partir das pessoas e não dos olhares, muitas vezes isolados, de parte significativa do clero. Nessa via de mão-única, o que se apresenta como profundo pode ser um artificialismo, uma retórica vazia que não pega, simplesmente porque não tem o que nem onde pegar. A aparente morte do transcendente diante dos fetiches pós-modernos pode não passar de equívocos pastorais no tratamento das noções do sentido da verdade.