Em uma sociedade farta de produtos e serviços que procuram anteceder até a imaginação das crianças, mas onde crescem também fartamente as doenças infantis decorrentes da falta de lugar para a criança ser criança de verdade, uma obra como a animação musical Pinóquio, de Guillermo del Toro, é uma grande preciosidade.

Mais do que um filme de arte que respeita a criança e o seu direito de lutar para ter um lugar na infância, Pinóquio é uma oportunidade pedagógica diante da guerra entre os múltiplos condicionamentos dos modelos de infâncias e a cultura da infância. Um dos maiores conflitos da criança na atualidade é a pressão que ela recebe do excesso de mapeamento e de fórmulas de resolução desses conflitos.

O cineasta mexicano, que divide a direção com o diretor estadunidense Mark Gustafson – que assegurou em stop-motion a plasticidade fascinante da obra, a qual, por sua vez, tem parte da narrativa primorosamente trabalhada pelo músico francês Alexandre Desplat –, em apenas 1h e 54min, entrega com bichos humanizados e humanos animalizados uma necessidade de resposta ao que é ser criança de verdade.

Del Toro inicia o filme com uma homenagem ao autor do clássico Pinóquio, o escritor e jornalista italiano Carlo Collodi (1826 – 1890), dando seu nome ao que seria o filho biológico do carpinteiro Gepeto, morto durante um ataque aéreo na Itália fascista da década de 1930. Com isso, ele introduz também a época em que ambienta a história do boneco teimoso que conquistou a faculdade de ser criança.

Enquanto Pinóquio se esforça para entender os valores sociais e educacionais que encontra no mundo em que quer crescer amando e sendo amado, ele não abre mão de usufruir da experiência infantil tendo como ponto de partida o seu estado bruto de criança, sem ter que submeter sua credulidade a assédios de exploradores comerciais e políticos da infância.

Cena de Pinóquio, animação em stop-motion do cineasta mexicano Guillermo del Toro (Netflix, 2022).

As ameaças de retrocessos civilizatórios vigentes na contemporaneidade estão representadas por Guillermo del Toro nessa nova aplicação dada ao significado da obra de Collodi, escrito em 1881. A gênese do fascismo, vista na continuidade das lideranças messiânicas e movimentos antidemocráticos, na exaltação das armas, nos ataques à imprensa e na militarização da mente infantil, amplia a indagação sobre o que é ser criança para o que é ser humano.

O enfrentamento dessas questões passa pelas artes e pela literatura, suas hipóteses de sentido, vida e morte, sensibilidade estética e diversão da mente e do corpo como partes do fluxo de viver interconectados por todos os reinos da natureza. Somente brincando e brigando livremente com conselhos de grilos falantes, destrezas de gigantes marinhos e a suas próprias angústias de crescimento a criança pode fundir e formar proteções intuitivas e racionais.

Pinóquio é uma dessas possibilidades que a infância tem de encontrar defesa em seu estado profundo. A sociedade como um todo precisa desses espaços de sublimação. Em sua “Gramática da Fantasia”, o escritor e educador italiano Gianni Rodari (1920 – 1980) fala do quanto a Alemanha subjugada pelas guerras napoleônicas (1803 – 1805) conseguiu se fortalecer com a transcrição da sabedoria monumental das fábulas, feita pelos irmãos Jacob (1785 – 1863) e Wilhelm Grimm (1786 – 1859).

Para Rodari, a obra de Collodi ganhou a importância que tem ao longo do tempo porque atribuiu o papel de protagonista à criança como ela é, e não como os adultos gostariam que ela fosse. Isso dá a meninas e meninos o conforto de que pode até ser doloroso ser criança de verdade, mas que vale a pena. Ao fazer seu filme, Guillermo del Toro manteve esse encanto original de Pinóquio, como um SOS à infância e à humanidade.