O pragateado da caatinga
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 11 de Março de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Depois da inquietante tristeza de ver a constatação de que a cobertura vegetal da caatinga está pela metade e que o Ceará, depois da Bahia, é o estado que mais destrói a natureza, conforme dados publicados no último dia 3 pelo Ministério do Meio Ambiente, reacendi em mim uma alegria, também inquietante, ao ver a apresentação do pragateado do Mestre Zé Augusto com a banda Dona Zefinha, sábado passado, dia 6, no Centro Dragão do Mar, como parte dos espetáculos do prêmio Interações Estéticas, da Fundação Nacional de Arte, Funarte.

O motivo da minha satisfação não é compensatório. Não estou querendo me confortar com a beleza e a riqueza da arte, enquanto a beleza e a riqueza da caatinga erodem cruelmente. A equação que me empolga é a possibilidade de combinação de cultura e ambiente na solução de um problema que é cultural e ambiental. A criatividade, o vigor e a interação apresentados com música, poesia, relaxos, brincadeiras e sapateado, pela banda músico-teatral de Itapipoca e pelo grupo agropastoril de Independência, revelam que o nosso reflorestamento cultural está sendo feito e isso me anima a acreditar que é possível caminharmos também para o desenvolvimento de uma cultura ambiental.

Mesmo não tendo uma estatística da destruição da nossa cultura, o estrago que tem sido feito é no mínimo equivalente à devastação ambiental. E não dá para resolver uma questão desse tamanho e complexidade sem que a cultura conte com o meio ambiente e o meio ambiente conte com a cultura. Ambos precisam um do outro porque são complementares, porque têm uma mesma mãe, que é a natureza, e uma mesma casa, que é o planeta onde se realizam. Ao calcularmos os custos ambientais da caatinga, precisamos embutir os custos culturais, estéticos, etnológicos e econômicos.

Desde 2003, um decreto presidencial estabeleceu que a data de 28 de abril passaria a ser comemorada como o Dia da Caatinga. Foi um primeiro grande passo para a reversão do quadro de empobrecimento desse bioma exclusivamente brasileiro. O segundo passo será dado com o início da implementação do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Caatinga, anunciado pelo Ministério do Meio Ambiente para o próximo 28 de abril. Esse plano contará com muitos recursos, inclusive com um Fundo da Caatinga, a ser administrado pelo Banco do Nordeste, BNB.

Desde 2004, a cultura ganhou espaço na agenda do desenvolvimento brasileiro e dentre as muitas iniciativas dinamizadas pelo Ministério da Cultura (MinC), a dos Pontos de Cultura é a mais fomentadora da cidadania. O Reisado do Mestre Zé Augusto ganhou impulso depois que o assentamento da Cachoeira do Fogo conquistou um Ponto de Cultura. O encontro com a banda Dona Zefinha é um feliz exemplo das possibilidades desses espaços culturais comunitários que passaram a ser reconhecidos pelo Estado e pelos diversos segmentos sociais como de grande importância para o País.

Embora originalmente essas movimentações em favor da caatinga e da cultura não tenham sido pensadas para convergir, parece-me indispensável que convirjam. Os pontos de cultura não são apenas de cultura, são também pontos de formação de consciência ambiental. A intensificação da sensibilidade por meio da manifestação artística é base fundamental para a relação integrada com a natureza. O pragateado do Mestre Zé Augusto é o pragateado da caatinga em inspiração de dança de caretas, onde a multiplicidade dessacraliza a razão ao descrever o mundo no campo comunicativo da cultura e da natureza.

Nunca acreditei e continuo não acreditando que seja possível cuidar do meio ambiente sem cuidar da cultura. Toda vez que falo do meu livro “Titico achou um anzol” (Cortez, 2007), com aventuras de aves e animais da caatinga, dirigido prioritariamente à criança, faço questão de dizer que se trata de um trabalho cujos personagens são meus amigos de infância. Nasci na caatinga, na mesma Independência do Mestre Zé Augusto, e quando menino ficava incomodado porque os livros que eu conhecia só mostravam ursos, elefantes e leões, quando nas calçadas as pessoas contavam histórias de onça, papagaio e de jabuti.

Nas conversas que tive com crianças leitoras das aventuras do Titico, que é um preá, percebi a surpresa da descoberta de que preá, jaçanã, peba, casaca-de-couro e carcará são também dignos de história própria e de figurar em livros. A professora Maria Ivaneide Feitosa, secretária de educação de Independência à época do lançamento do livro, disse-me que até no interior do município tinha encontrado meninas e meninos que conhecem esquilos, mas não sabem o que é um preá. Quero dizer com essa ilustração que não dá para pensar em preservação do que não se conhece.

A eficácia da motivação da população para a preservação do bioma caatinga passa por uma relação de empatia, de afetividade e de sentido comum, que tem na cultura a sua âncora sentimental. Uma parte da coisa é racional e técnica, mas a outra é emocional e de saber espontâneo. É da conexão entre elas que deve brotar o espírito libertador do estereótipo de mundo descolado da modernidade e do estigma de lugar seco, espinhoso, morto e marginal. A caatinga será salva da desertificação total se conseguirmos enxergar riqueza e beleza na sua diversidade de fauna e de flora. E isso só será possível se conseguirmos frear o embrutecimento que a carência de vitamina arte tem nos causado.

O governo federal diz que não haverá solução para a defesa da caatinga se não forem mudadas as matrizes energéticas, que consomem lenha e carvão, por fontes de energias limpas, como a eólica, a solar, o biodiesel e pequenas centrais hidrelétricas. Estou de acordo, mas acrescento que precisamos mudar também a nossa matriz de sentimentos e de referências com relação à caatinga. A caatinga não é; ela se faz, se desfaz e se refaz conforme sua estratégia ecológica. O aquecimento global e a ação humana não estão para brincadeira.

Os tempos falam por si e já não temos mais como colocar a culpa na ignorância. As árvores queimadas viram carvão porque a madeira é feita do carbono aprisionado no ar. Quando morrem, elas liberam o carbono que retiveram. A caatinga tem alta vulnerabilidade ao aquecimento do planeta e está em acentuado processo de desertificação. As plantas da caatinga estão sob pressão, mas não negam sementes. Como o pragateado do Mestre Zé Augusto, querem romper o isolamento e estalar como as sementes de faveleiro e voar como as plumas de ciúme (flor de seda) em busca de solo fértil.

Além do nível de degradação identificado por satélite, o Ministério do Meio Ambiente declarou que a grande parte do carvão produzido com gravetos da caatinga vai para siderúrgicas de Minas Gerais e do Espírito Santo. Se já é um absurdo derrubar a mata para servir aos fornos das olarias, fábricas de gesso e padarias locais é inconcebível esse fornecimento perdulário de carvão para outras regiões. Isso precisa parar já. Essas divisas são dinheiro da degradação ambiental e social.

Estamos bem próximos de duas datas bastante significativas para quem acredita que, juntar cultura e ambiente, é um modo de forçar uma nova migração civilizatória: de 25 a 31 de março acontecerá em Fortaleza um encontro com mais de dois mil Pontos de Cultura de todo o Brasil; e em 28 de abril, Dia da Caatinga, será lançado o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Caatinga. E salve a Dona Zefinha, que chamou a tempo o Cassimiro Coco para um pragateado com o Mestre Zé Augusto.