O que dizem as pipas no céu
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 30 de Julho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No Ceará temos ventos constantes e suaves o ano inteiro, mas no início do segundo semestre esses ventos se intensificam e convidam a criançada à temporada de pipas. Parte do céu da cidade de Fortaleza ganha uma alegria muito própria, especialmente nas faixas de praia e na periferia. As crianças voam com as pipas, zigue-zagueiam e fazem piruetas em um espontâneo aprendizado da relação do frágil com a imensidão, como é a vida.

Em nosso animismo popular a pipa ganhou o nome de arraia, por sua semelhança com o peixe de forma achatada, que dispõe de um pequeno ferrão na ponta do rabo, comum na costa cearense. O azul do céu fica pontuado por essas lépidas figuras com jeito de cometa, armadas com taliscas de carnaúba e contrapesada por um rabinho de retalhos de pano para não emborcar.

A meninada faz arraia de tudo, até de sacola plástica, com rabo de pedacinhos de papelão fixados por tiras também de plástico. Muitas ainda são feitas de papel de seda e algumas de tecidos de náilon. Nas avenidas que dão acesso ao litoral, os camelôs começam a vender pipas chinesas com variadas formas e estampas, mas que rasgam fácil por incompatibilidade de ventos.

Empinar pipa é uma maneira muito especial de temperar a fibra do senso de liberdade criativa, considerando as possibilidades de manobras, de voleios e de soqueados que a atividade oferece ao brincar livre. Neste tipo de brincadeira, a criança se desprende das roteirizações e se prepara para ser humana, acima de tudo.

No desenvolvimento pelo brincar a criança se integra ao brinquedo. A pipa é a sua extensão, seu corpo que toca o céu, sua fantasia que baixa à terra. As pipas são as almas dos meninos que vagam felizes pelo mundo da brincadeira.

Na brincadeira de soltar arraia, uma parte é interação com a realidade externa, que é o lugar onde a criança brinca, com quem ela faz isso. A outra, é a transcendente, a que leva a infância para dentro de si, para o lugar onde habita seu ser mais profundo, o ser que a prepara para se tornar um adulto mais apaixonado pelo viver.

A pipa não quer regras, quer fantasia. E fantasiar é diferente de sonhar. São situações que se expressam em ordens distintas. Fantasiar é um recurso da imaginação que está aparentemente dissociado da investigação imaginativa do mundo; enquanto sonhar implica em quereres, desejos e negações.

E a fantasia desempenha um papel de extrema importância na construção da realidade, ao nos impulsionar a experimentação das nossas infinitas possibilidades. Com a pipa, a criança transpassa as dimensões do seu mundo exterior em idas e vindas ao cenário interior. A pipa flutua por dentro e por fora do menino que a empina.

A mente deixa fluir a fantasia porque é tocada pela grandeza da existência, pela capacidade de abraçar metáforas. Ao ser parte umbilical da pipa, a criança dá oportunidade à própria mente de se preparar para desenvolver as atividades mentais necessárias para a dinâmica da vida e suas indispensáveis adaptações.

Quando soqueia a arraia no céu, a criança está desenhando fantasias. Desenhos que não ficam riscados no ar, como os que são feitos pelas esquadrilhas da fumaça. O desenho feito pelas pipas, seus rastros, seus traços, são invisíveis e servem para guiar os passos das nossas expectativas, do nosso comportamento, da nossa personalidade e dos nossos sonhos.

Mais do que uma fantasia inconsciente, pertencente ao ego, a fantasia de empinar pipa se dá na dimensão social e cultural da estética. Soltar pipa é contemplar, no sentido mais elástico do termo, no sentido do sublime, quando a beleza é sentida em movimento. Como toda brincadeira espontânea, ela é uma instância não-convencional do real, onde a experienciação tem mais valor do que a representação.

A inserção na memória coletiva feita pela brincadeira com pipa contribui para abrir perspectivas à cultura da infância na vida urbana. Na entrevista que fiz com Maria Amélia Pereira (Peo), publicada no meu livro “Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo” (Cortez Editora, São Paulo, 2009), a educadora revela sua crença na salvação das cidades pela cultura que está guardada pelas populações que ficaram à margem do processo de modernização das cidades.

Para Peo, fundadora e orientadora da Casa Redonda Centro de Estudos, em Carapicuíba, interior de São Paulo, a brincadeira pertence ao sagrado, enquanto mistério da vida presente em cada ser humano. “O brincar sagra a vida porque dá sentido ao que está sendo vivido. É expressão livre, espontânea e imprevisível do humano” (p. 327) e se manifesta em situações que possibilitam a apropriação de vestígios rituais de outras gerações.

A pipa ao vento é a própria simbolização do imprevisível a que se refere Peo. Não se limita a pensamentos inconscientes nem ao funcionamento neurológico regular. Na brincadeira de empinar pipa o funcionamento mental simplesmente se entrega ao caos para poder deixar que o lancear da linha seja um estado de alegria. Portanto, soltar arraia não combina com ansiedade, nem serve para ser apenas a representação simbólica do objeto, pois neste caso o princípio do prazer é equacionado pela força da estética no universo da cultura da infância.

Na brincadeira com pipa, diferentemente da psicanálise e da neurociência, a fantasia se expressa na claridade dos gestos e das sensações, pelo viés da sensibilidade que sedimenta o desenvolvimento físico, mental, emocional e social da criança. Brincar de arraia rompe fronteiras entre o somático e o mental, levando a meninada, onde quer que esteja, da condição social que for, a não hesitar em soquear a linha para zanzar livre em seu mundo circundante e, consequentemente, se construir enquanto consciência e pessoa.

Soltar pipa funciona como um exercício de alteração das funções dos sentidos em suas combinações de sensações. Isso me leva a crer que a criança que empina arraia está mais propensa a descobrir, por exemplo, que a generalização da violência é uma farsa. A movimentação imprevisível da pipa no céu descruza os pontos de convergência dos sentidos, quando, por qualquer motivo nos concentramos para dar atenção a um objeto.

Sensação parecida de descruzamento dos pontos de convergência dos sentidos eu tive no sábado passado quando fui levar as bicicletas dos meus filhos para lubrificar. Sai pelas calçadas com o braço direito segurando o guidão esquerdo de uma bicicleta e com o braço esquerdo segurando o guidão direito da outra. Quando eu direcionava a minha atenção para a manobra de uma bicicleta, automaticamente perdia o controle da outra.

Um sentido puxa o outro e a condução simultânea de duas bicicletas em pisos irregulares rompe com o acerto dos nossos neurônios em favor da circulação em espaços estabelecidos e entendidos como de trânsito. É nesse rompimento que está o diferencial da brincadeira de arraia. No céu, diferentemente das calçadas, a ausência de parâmetros físicos limitadores, quebra o domínio dos sentidos, como ocorre regularmente na maioria das situações.

Assim, quando a criança brinca de empinar pipa ela está se descondicionando psiquicamente, neurologicamente e socialmente em uma circunstância preciosa de prática da fantasia. Soltar arraia é um ato desafiador da mente na recuperação da base de recordações da memória coletiva e da produção de antevisões para a formação da consciência. Ao pensar nessa maravilha e ao observar a beleza das pipas no céu, escuto cada uma delas dizer que a infância ainda não se entregou.