O que você viu, Dona Zefinha?
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 14 de Junho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tantos lugares que existem para a Dona Zefinha fazer compras e ela foi escolher exatamente o Beco da Poeira para adquirir suas brevidades. O que estará se passando na cabeça dos integrantes dessa banda, que é um misto de música e teatro? Os shoppings dizem que são mais seguros, mais higiênicos e, além do mais, suas lojas têm Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), call center, marketing one-to-one, cyber café, gerenciamento de relacionamentos e ações de responsabilidade social.

Desconfio que a Dona Zefinha tem desconfiado de alguma coisa no mundo do consumismo e suas conexões com as pessoas. Com a banalização das novidades, tipo celular, o mercado tem investido na customização dos produtos e serviços. A exclusividade do detalhe é que o marketing assegura ser a grande diferença no momento. Zefinha deu rabiçaca para tudo isso e foi se meter no seio da pirataria, da falsificação e das sacoleiras. Talvez tenha razão, pois diante da homogeneização do consumo, parece um disparate só existir exclusividade no que é copiado.

A cópia é imperfeita e restrita à sua própria condição de imitação. Tem quase produção em larga escala e está em todas as feiras, sem ser multinacional. Em tempos de marketing aspiracional, internet, comunidades em rede e consumismo, a Dona Zefinha não poderia ficar por fora; por isso parece ter decidido ficar por dentro. E a regra na realidade das concentrações é a exclusão. A comunicação massiva atua indiscriminadamente, vendendo supostos desejos a todo instante e, com isso, atinge um sem-número de indivíduos economicamente não-consumidores.

Mas esses não-consumidores, querendo ou não, são atingidos pelas balas perdidas das campanhas de marketing e, óbvio, embora apartados das oportunidades de emprego e renda, querem consumir também. Formaram-se, então, as condições para a replicação, o arremedo, a contrafação. Esta é a conjuntura abordada pela arte do presente, que a Dona Zefinha faz constar no seu segundo cd e no espetáculo Zefinha Vai a Feira, que será apresentado amanhã, 15, e sábado, 16, às 21 horas, no teatro do Centro Dragão do Mar.

Diga-se a propósito que o trabalho da Dona Zefinha reflete, na interpretação desassossegada das novas gerações, as expressões sociais e culturais das buscas de vestígios implícitos na realidade cotidiana. Os sentidos aguçados da banda vão além das bugigangas, estendendo-se para a sofisticação dos serviços na zona emaranhada da informalidade. Para escarafunchar mais essa dimensão, eles inventaram um debate, que ocorrerá no próximo sábado, 16, às 16 horas, também no teatro do Dragão, com o sugestivo título: “Arte gambiarra, a reinvenção do tecnológico”, do qual participarei, ao lado do multiartista Orlângelo Leal, do designer Paulo Amoreira, do engenhoso luthier Cláudio Silva e do J. Sobrinho, proprietário da enfeitada Belina itapipoquense, que posou para a capa do cd da Dona Zefinha.

A bem da verdade, os novidadeiros do mercado que me desculpem, mas nada é mais exclusivo do que uma gambiarra. Em gambiarra não há imitação, cada improviso tem a sua própria necessidade e solução. Na avalanche de ofertas dos domínios da atividade humana, a arte de se virar com quase nada é pelo menos tão criativa quanto as inovações tecnológicas. É nesse contexto de extremidades que a Dona Zefinha faz a produção do seu espaço artístico. O sentido de feira é tratado pela banda como uma territorialidade de vínculos sociais, na qual o caminho de integração se faz em função dos pontos de parada e não de um ou de outro local de origem ou de chegada.

O Beco da Poeira é uma referência de categoria socialmente construída do comércio popular, utilizada pela banda como palimpsesto, a fim de garantir a dinâmica artística em estado de resignificação e não para definir um lugar de fixação de inquietudes. Orlângelo, Márcio, Maninho, Danilo, Joélia, Paulo e Vanildo, que integram a formação atual da Dona Zefinha, entremeiam performance cênica com violão, rabeca, marimbau, sax, baixo, flauta, pífano, bateria, percussão e um banjo feito pelo Cláudio Silva, a partir de uma panela de pressão, para fazer a arte solta do Brasil real.

Tocando o espetáculo como uma obra de releitura da feira, como princípio autêntico e fim replicado de tudo o que hoje recebe o nome de mercado pela vulgata da globalização, a Dona Zefinha recorre à comicidade e à sátira do teatro de mamulengos para manifestar o que chama de alusão irônica à antropofagia tecnológica. Para isso, conta especialmente com a incorporação, feita por Ângelo Márcio, do boneco Casimiro Coco, que comanda, em dramaturgia de circo e de folguedos populares, as relações entre barraqueiros, pechincheiros, pedintes, bêbados, artistas de rua, sacoleiras, camelôs, fiscais e policiais do rapa. Nesse meio não há retrato falado, não há projeções de institutos de pesquisa, as expectativas confundem-se com o ato de satisfação.

Com espírito circulante a Dona Zefinha, movida pelo estirão da estrada e não pelas paradas, imprime elasticidade às expressões da cultura popular, mais por impulsos romanescos do que propriamente por busca de primazia como grupo musical. Toda a arte da banda pode ser traduzida em uma eterna semeadura das suas vertentes essenciais em uma conjuntura alienante, na qual as magníficas possibilidades de acesso a dados e informações, conquistadas pelos avanços tecnológicos, acabam por falsear a sensação de conhecimento e de atualidade entre as pessoas. Sem cair na besteira de negar a importância do cipoal cibernético, o trabalho da banda produzida por Thaís Andrade e o seu Caldeirão das Artes entra na rede para reforçar outros nodos da vida, que estão em nós, mais próximos de nós do que muitas vezes suspeitamos.

Essa coexistência de espaços, onde se dá o encontro do tecnológico com a gambiarra, forma o ambiente ideal para brotar a criação circense, poética e sonora da Dona Zefinha. Valendo-se de acrobacias, dança e contação de causos, ela desenrola coco, baião, maracatu, samba, toque de candomblé, cantigas de viola e toadas de cavalo marinho, dessacralizando qualquer distância entre o artista e o público pela força da sabedoria brincante. O senso de exterioridade da banda desce o palco com ela, sem dificuldades para fazer parte de uma narrativa de feira, que nega o paradoxo da verdade sedentária do consumismo virtual. O trabalho da Dona Zefinha sublinha a urgência da valorização cultural, rompendo com a nossa tautologia de louvação da saudade, para encontrar o olhar atento de quem quer saber o que há por trás de cada linha do horizonte a ser cruzada.

A Dona Zefinha tem mais de uma década de caminhada, com um pé em Itapipoca, outro em Fortaleza e passagens para apresentações em São Paulo, Natal, Recife, Olinda, Brasília e Campina Grande. Já tocou na Coréia do Sul e na Alemanha. Às vezes tenho a impressão de que foi essa ida ao exterior que deu a dimensão de feira e gambiarra nos ajustes perceptivos da banda. O que a Dona Zefinha viu em Seul? Um grande comércio de tecnologia de ponta em meio a palácios e templos seculares, cercados de montanhas e pobreza por todos os lados. E em Berlim, Dona Zefinha? Seis milhões de alemães sem cidadania, filhos de imigrantes, e o prolongamento da apartação velada, existente entre os alemães com pedigree, eventualmente reunificados após a queda do muro. Tanto que economicamente, a parte oriental continua vista como de segunda classe, por não ter acesso aos benefícios do alto padrão tecnológico do mercado daquele país, tendo que se virar mesmo é na feira. Se esse não for um discernimento falho, posso dizer que a Dona Zefinha é uma banda de olhar global com sotaque local.