O réveillon da esperança
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 03 de Janeiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Entro o ano de 2008 com o coração animado e com a minha expectativa cidadã renovada. A tranqüilidade e a intensa participação das pessoas nas festas de véspera do ano-bom sinalizam que o país está mais integrado e menos injusto. Passei o réveillon no aterro da Praia de Iracema e vi de perto as famílias ceando, as pessoas se divertindo, cantando e se confraternizando, como há muito eu não via em Fortaleza.

Depois de quase duas décadas de devastação produzida por uma estrutura política e administrativa arcaica e viciada, Fortaleza conquista o direito de ser percebida por seus habitantes e visitantes como uma cidade que tem senso de vida comunitária, postura urbana afirmativa e pessoas orgulhosas do lugar onde moram. O réveillon popular, promovido pela Prefeitura de Fortaleza, expôs uma necessidade contida de desenvolvimento de uma cultura de convivência centrada em ambientes sociais instigadores do espírito de pertencimento e de transformação.

Percebo a expectativa urbana do fortalezense como um desejo coletivo inspirado em parâmetros humanos, mesmo em um mundo marcado pelo domínio do poder econômico e pelas disputas hegemônicas. A realização de uma festa de passagem de ano com a qualidade da que ocorreu na Praia de Iracema é uma interferência positiva de uma política pública voltada para a igualdade no uso democrático da cidade. Essa iniciativa foge do componente nostálgico e aponta o canhão de luz rumo à concretização de parte significativa do que é a essência das cidades, que é a busca da satisfação humana de convivência.

Promover a convivência é fundamental para o reequilíbrio dos centros urbanos modernos, que são hoje grandes entrepostos de serviços e de conhecimento, especialmente os que, como Fortaleza, são agredidos pela má ocupação do solo urbano, congestionamentos estressantes, degradação ambiental, desprezo pelo patrimônio histórico-cultural e condenados pela violência resultante da fissura entre a carência e a ostentação. Ricardo Legorreta, arquiteto mexicano que tem defendido a arquitetura como uma manifestação de serviço social e que, por sua postura antipedantismo da classe, vem sendo reconhecido como um dos mais destacados nomes da arquitetura mundial contemporânea, tem dito em suas falas que a verdadeira segurança ocorre quando os vizinhos se conhecem.

A disposição da prefeita Luizianne Lins de dar movimentação estruturada à Praia de Iracema é uma forma de vitalizar a identidade de Fortaleza. A ação de recriação desse espaço urbano, com agregação de novos cenários para ponto de encontro social e cultural, implica em indispensáveis desapropriações, que causam muitas reações, principalmente por parte dos piratas da esperteza, dos corsários do bucólico, dos saqueadores da memória e dos pilhadores de drogados e prostitutas, que vinham se beneficiando do antro de marginalidade que ajudaram a criar.

Por um equívoco de entendimento, normalmente o poder público é cobrado para investir apenas em aplicações funcionais, do tipo hospital, escola, água e esgoto, mas investir em alegria é uma maneira inteligente de redimensionar a ação de crescimento na esfera pública. O réveillon popular faz nexo com um socialismo participativo, que se propõe a estimular o uso espacial da cidade, por parte do maior número de pessoas, inflexionando a lógica corrosiva de descarte da maioria da população, que não tem como se incorporar aos eventos dos bufês, hotéis, clubes e barracas de praia.

A força integradora dessa ação demonstra uma sensível compreensão dos anseios sociais e fortalece a vontade fortalezense de convivência nas diferentes áreas da cidade. A reação preconceituosa quanto ao investimento no réveillon popular tem o mesmo ranço do egoísmo social que critica os carros da Ronda do Quarteirão: “essa gente não merece esse conforto”. Recordo que uma vez ouvi do Fáres Lopes, que era um dos mais grosseiros cartolas do futebol cearense, que ele tinha sido contra a colocação de cadeiras no estádio do Castelão porque a nossa “gentinha” não merecia ver jogo sentada.

Diante desse tipo de rudeza, o réveillon popular significa que está havendo uma mediação justa do poder público municipal para equalizar oportunidades de diversão em nossas contradições. Ao se tradicionalizar, o espetáculo da passagem de ano em Fortaleza tenderá a reduzir essa fragmentação entre privilégio e direito e contribuirá para dar novos parâmetros aos conflitos de ordem social e política.

A confraternização entre moradores e visitantes da cidade reafirma a identidade de local no plano do diálogo universal. Herbert Viana colocou essa dimensão muito bem em sua fala emocionada no final da apresentação da banda Paralamas do Sucesso, ao dizer que Fortaleza é uma cidade mundializada em um país que está melhorando e onde as pessoas merecem ser felizes. A prefeita Luzianne Lins provocou a multidão perguntando se já tinha alguém feliz ali no primeiro dia do ano de 2008. A resposta dos milhares de presentes ecoou com um sim cheio de renovada esperança.

Se o eleitor fortalezense não tivesse rompido com o modelo político totalmente refém da especulação imobiliária perversa e da megalomania degradante da minoria neoliberal que vinha comandando o Ceará, o próprio nome da cidade poderia estar em negociação com alguma multinacional. Digo isso brincando, mas com um fundo de verdade. Esse modelo de venda aconteceu recentemente nos Estados Unidos, onde a pequena cidade de Clark, no Texas, passou a se chamar Dish, por conta e interesse dos serviços grátis fornecidos por uma rede de televisão por satélite durante dez anos.

Luizianne Lins faz um governo de arrumação da casa. Além da missão de combater a cultura de balcão de negócios no âmbito da gestão pública, o seu mandato precisa promover a integração da cidade. Para romper com a crosta de uma máquina montada para não funcionar em favor da população, indo por dentro, há sempre riscos de deslizes de conduta e de traição ao projeto, mas isso faz parte da mudança pelo processo democrático. A prefeita inicia um processo de mudança, fundado no compromisso popular, que, certamente, não deixará o nome de Fortaleza ser posto à venda. Mais dia, menos dia, a máxima neoliberal de que “se tem grana pode comprar”, haverá de perder força para a formação de uma consciência crítica capaz de tornar a nossa dignidade inegociável.

É comum ouvir muitas pessoas confundindo a dinâmica do sistema social, cultural e político com as necessidades básicas da população. Por isso, há sempre alguém comentando que o dinheiro “gasto” com a festa do réveillon poderia muito bem atender a demandas de saúde, educação e saneamento. Felizmente essa mentalidade está mudando e investir em sociabilidade começa a ser visto como ação essencial e preventiva. A evolução desse entendimento nos levará à busca de saídas eficazes para a melhor utilização das nossas praças e dos vazios urbanos, como espaço de integração, de tecedura da nossa memória social, espaço de troca, de encontro, de respeito às diferenças e de reconhecimento do outro.

O réveillon popular tem função aproximadora e reorientadora do sentido de cidade. Se depois da festa, as pessoas, assim como aconteceu comigo, tiverem saído pelo menos com a pergunta “por que isso está sendo possível?” posso dizer que esse foi o réveillon da esperança; um momento de festa que pode suscitar uma visão de Fortaleza, não somente como um fenômeno geográfico-espacial de aglomerações e apartações, mas como um modo político e cultural de ocupação dos espaços na nossa vida social.