Toda vez que passo pelo município de Caridade, indo para Independência, pela BR-020, uma inquietação toma conta de mim. Há décadas costumo parar e comentar com quem estiver comigo o receio que tenho de um dia ver a cabeça de Santo Antônio, que está na rua de um conjunto habitacional, colocada no corpo da estátua feita com telas de cimento, erguida no alto do Serrote do Cágado, localizado por trás da área urbana.

O meu desassossego deve-se ao valor que percebo naquela situação especial de corpo e cabeça separados e sua correspondência com a maneira das crenças populares recorrerem à proteção do santo na busca de um amor. O padroeiro dos humildes, nos cânones da hierarquia religiosa, é também o das promessas casamenteiras arrebatadas nas nuvens, seja na configuração de união que for.

Vivemos um tempo de tanto acirramento entre o bem e o mal que parece um desperdício enquadrar um acontecimento que permite às pessoas se inserirem imaginativamente em um cenário de múltiplos segredos, como na bucólica Caridade. A história pitoresca, mítica e emotiva que funda a espacialidade metafórica do santo sem cabeça fornece temas inesgotáveis para devoções, contações de histórias, artes, literatura e causos alegóricos.

O chamado turismo religioso não deveria mais estar atrelado a romarias de penitências. A geografia peregrina dos caminhos de Canindé, em seu ponto mais legendário e ficcional, que é Caridade, já tem uma atração ordinária e estranha o suficiente para que não se queira tornar insólito o que é familiar. Em si, o corpo do santo sem cabeça e a cabeça longe do corpo são fontes contemplativas entrelaçadas pela jornada de Santo Antônio e pela condição humana diante do que se pode ou não ver.

Cabeça de Santo Antônio em rua do conjunto habitacional de Caridade/Ceará. Foto: Flávio Paiva (14/01/2006).

Desde o final da década de 1980, quando, por razões provincianas, a cabeça de Santo Antônio não foi levada serrote acima, que o fato foi ganhando características de fenômeno e o município de Caridade se tornando a terra do santo sem cabeça. O emaranhamento do comum com o peculiar ganhou força e decidiu-se construir um santuário com uma estátua com cabeça, como as existentes em outros lugares de adoração, abrindo-se mão de um diferencial narrativo construído de graça pelas circunstâncias.

Naquele momento pensei no quanto a cabeça posta no corpo da estátua seria um ato de dessacralização. Foi então que publiquei o artigo “Santo Antônio sem cabeça” (DN, 27/08/2009), no qual defendi a manutenção da cabeça do santo separada do corpo como particularidade de um turismo com alma, capaz de comportar interesses de pagadores de promessas, de quem está no encalço de casamento, dos que desejam obter revelações, de feirantes abençoados e das pessoas que procuram simplesmente uma boa história.

Dias atrás passei novamente por Caridade. Da rodovia observei que o projeto de construção do santuário está em curso. Mais uma vez peguei-me interrogativo, em que pese o anúncio de que a cabeça de rua será preservada. As histórias sempre perdem a finalidade quando abandonam suas origens e, neste caso, embora a relação do santo com aquele município tenha na virtude da caridade a sua motivação toponímica, as raízes semióticas da sua presença estão fincadas mesmo é na casualidade geradora da cabeça separada do corpo.

Em muitos lugares Santo Antônio tem destaque nas festas juninas e em movimentações dirigidas aos pobres, e tem sua imagem pendurada de cabeça para baixo, amarrada com embira em pé de cerca, soterrada, afogada e com a cabeça arrancada como intimidade da fé casamenteira. Mas somente em Caridade tudo isso é monumental. Este conceito perderá o seu impacto com a inauguração da nova estátua padrão, o que, certamente, será bom para o turismo local. Contudo, não posso deixar de registrar a minha indignação diante disso, fazendo como o próprio Santo Antônio, que, não conseguindo ser ouvido pelos hereges, fez sermão aos peixes.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/10/09/o-santo-sem-cabeca.html