O teorema de Pasquale
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 12

Domingo, 09 de Junho de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na trama da miscigenação brasileira encontra-se o mais dinâmico laboratório mundial da língua portuguesa. Entretanto, é curioso perceber que nesse fenômeno civilizatório o estudo da gramática sempre foi mais valorizado do que o estímulo ao exercício da própria língua. Tal desatenção contribuiu significativamente para tornar o hábito de ler enfadonho e desinteressante. O segredo do professor Pasquale está no jeito desarmado com que ele passou a inverter essa lógica que coloca a técnica acima da emoção e a forma antes do conteúdo. Ao dispensar a tradicional noção de dever ele introduziu o encanto pela língua na agenda nacional. Suas aulas através da mídia aproximam didaticamente a palavra do senso comum, pela força da música, da poesia, da literatura e dos pensamentos tocantes, associando prazer e alegria ao desejo de aprender a ver, a ouvir e a sentir.

O gosto pela leitura é o gosto pela possibilidade do que as palavras escritas têm a dizer. A palavra é uma espécie de interlocutor do desejo. Não tem valor em si, mas pelo que pode significar na interpretação das pessoas. Ela tem a faculdade de lembrar ao leitor a consciência que ele possui de alguma coisa e isso é naturalmente estimulante. Por isso, o problema da leitura está mais na falta de motivo para ler do que no ato propriamente dito. Uma criança que ainda não sabe ler, quando tem a oportunidade de presenciar alguém lendo uma história que lhe interessa, fica incrivelmente tentada a se esforçar para ler também, para descobrir o que de tão mágico existe no texto que faz com que o outro tire dali algo fascinante. Situações assim comprovam que o estímulo à leitura deve ser feito por tentação e não por obrigação.

O analfabetismo guarda suas gorduras na ausência de aspiração, por isso é uma questão política. O indivíduo destituído de competência de leitura, incapaz de apreender o discurso de um texto, mesmo sabendo ler e escrever, não pensa. Neste aspecto o professor Pasquale carrega no verbo quando afirma que “pensar em pensar é melhor do que falar bem ou mal”. Ele defende que temos de levar em conta que a capacidade de raciocinar a partir do que se lê, mas conclui que “o pensamento vai mal”. Patativa do Assaré costuma dizer que é bem melhor falar as coisas certas de maneira errada do que falar correto de coisas erradas.

Atribuir a quem não gosta de ler uma questão de fastio interior é comodidade pedagógica. A leitura em si não existe. Quem lê precisa se reconhecer no texto, quer por afinidade de valores, quer por curiosidade de acenos exóticos. Ler é se apropriar da mensagem, é se envolver com ela para transitar entre o mundo das idéias e a realidade. O êxito do que estou chamando de teorema do professor Pasquale passa por um composto de atributos estéticos no seu intuito de estimular o amor pela língua a partir da descoberta de interesse no significado das palavras. Nesse jogo a atenção é aprisionada por tornar-se livre na clareza da vontade humana de dialogar com a palavra. Uma leitura prazerosa nasce da atração mútua, da troca de estímulos e excitações entre o leitor e o texto.

O grande atestado dessa troca acontece no próprio momento de elaboração de um texto. Há instantes que surpreendentemente me percebo leitor de mim mesmo. Começo a desenvolver uma idéia e uma ou outra palavra logo chega com novidade me levando a conduzir repentinamente a linha do pensamento a caminhos inesperados. Tenho a sensação de que escrever não é diferente de ler. Da mesma maneira que quando escrevo vou simultaneamente lendo e modificando o curso do raciocínio, quando leio vou escrevendo na minha compreensão as imagens que faço do mundo.

A essência da língua encontra-se na mesma essência de quem recorre a ela para se comunicar. Quanto mais auto-reconhecido é o sujeito, mais importância tem a sua busca pelo que as palavras escondem entre vocábulos, sílabas e fonemas. A visão que uma sociedade tem de si mesma é o maior estímulo à leitura e ao zelo pela língua. Então, seguindo esse juízo, não há como resolver o problema da leitura enquanto não superarmos o complexo de subordinação do nosso desejo. Querer ser o outro desarticula a nossa língua pelo mero reenvio de significação.

Tomando como base um recurso bastante utilizado pelo professor Pasquale, recorro à música Sem a Letra “A”, de Tom Zé e Elifas Andreato, para enfatizar toda a importância da consciência da palavra como instrumento de sustentação da essência humana. Quando eles alertam que “sem você nem tristeza teremos / pra nos lamentar” e que “sem você nem morrer de saudade / nem mesmo chorar”, estão de fato tocando nos nossos pontos vigorados pela língua. O argumento, então, de que com a “palavra vazia ninguém mais namorará” prescinde de considerações adicionais. Preservar a língua é valorizá-la como instrumento de auto-descoberta e de evolução social e cultural, permitindo-lhe seguir a sua dinâmica darwiniana de seleção de expressões na representação e anti-representação do que somos e poderemos ser.