Depois de mais de quatro décadas encontrei-me novamente com o vencedor do único Festival de Poesia Maluca que realizamos no Ceará. Essa reaproximação foi iniciada a partir de uma mensagem que recebi do compositor e educador carioca Paulo Bi: “Um conterrâneo seu, amigo cordelista, cantor, poeta, vai se apresentar em Fortaleza. Falei a seu respeito e pensei de fazer uma conexão entre vocês. Chama-se Costa Senna. Ele mora em Sampa”.

Expliquei ao Bi que, com essa ponte, ele estava reconectando andanças de tantos anos atrás. Lembrei-me imediatamente do Costa Senna. Em 1980, quando nos conhecemos, ele manifestava uma força poético-existencial aflita, que não tinha como ser apagada da minha memória. À época, eu assinava Flávio d’Independência e participava da Cooperativa de Escritores e Poetas (CEP), que tinha como vórtice a casa do poeta Farias Frazão (1950 – 1982).

Naquele ano, o palco do antigo teatro da Emcetur (hoje Carlos Câmara), com sua então fachada de vidro e parede com grafismo de vela de jangada sobre ondas do mar, tremeu de tanto espanto: “Você pensa que eu sou doido / Pelo jeito de falar / Com as minhas mãos rebeldes / Fazendo gestos no ar / Te olhando cara a cara / Sem medo que a tua cara / Venha à minha descarar”, detonou Costa Senna, afirmativo, com cabelo black power, em seu poema “O doido”, que foi o primeiro colocado.

Marcado desde criança por dificuldade de concentração, sem que isso fosse identificado como TDAH, o poeta aprendeu a escapar das intimidações, comumente dirigidas a esse tipo de comportamento, brincando com as palavras. No lugar de alguém com “problemas mentais”, ele passou a assumir-se como portador de “poemas mentais”. No colégio Arminda de Araújo (CNEC), não conseguiu ser um bom aluno, mas ficou conhecido pelos saraus que promovia no âmbito escolar.

Costa Senna em foto de Flávio Paiva (Fortaleza, 05/01/2024). No detalhe, o poeta na década de 1980.

Fortalecido por esse aprendizado antibullying que desenvolveu, Costa Senna peitou o público do festival: “Sou ciente que sou doido / Mas tu é doido também / E se eu gritar ‘xô doido’ / Aqui não fica ninguém / Não importa a postura / Mas um pouco de loucura / Cada um da gente tem”. Na plateia, falatórios, palmas e exclamações sonoras de purgação entravam em coro com os versos do poeta em seus vinte e poucos anos.

Sabíamos que em um Festival de Poesia Maluca poderia aparecer de tudo, mas Costa Senna foi além do que esperávamos, dando ao sentido de maluco um propósito de integridade do ser: “Quem é que não enlouquece / Nessa terra desalmada (…) Tem que pagar pra nascer / Tem que pagar pra morar / Tem que pagar pra comer / Tem que pagar pra estudar / Só louco não fica louco / Vivendo nesse sufoco / Qualquer um tem que endoidar”, destampando de vez o gozo coletivo em um ato dialético de combate ao suicídio.

Como bom artesão das palavras, ao longo dos anos Costa Senna foi encorpando e ampliando o poema vencedor do Festival de Poesia Maluca com referências da realidade pouco sã em que vivemos, até que “O doido” virou livro das Edições Paulinas (1996). O argumento do autor para manter esses versos acesos como uma pira olímpica é muito simples e direto: “Tenho consciência de que o mundo foi criado para todos e ainda não entregaram a parte que me cabe”.

Costa Senna formou-se a si próprio pelo verso, pela rima, pelo riso, pelo canto, pela garra, pelas amizades e por ter uma reverência nordestinada por Raul Seixas (1945 – 1989), o ‘maluco beleza’ baiano, autor de “Metamorfose Ambulante”. Por sua atuação como artista e agitador da cultura popular, tem o título de cidadão paulistano, concedido em 2007 pela Câmara Municipal de São Paulo, e é presença constante em saraus por todo o Brasil. Na próxima quinta-feira, 11, às 19 horas, estará com sua “Palavra despida” no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza. Em tempo: não tem que pagar para entrar!

 

Fonte
Jornal O POVO